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O MEU FILHO MATOU O PAI
A voz de uma mãe em desespero fura as paredes, mas quando entrei na sala de audiências vi todo o tribunal estacado em roda das palavras que saltavam de uma coluna de som. Afinal, ninguém falava ao vivo, era a gravação “para memória futura”, já com meses, da mãe do homem curvado no banco dos réus, quase de testa nos joelhos. A voz da mãe espalhava-se pelos cantos, batia e regressava, mais aguda, aterrorizada, como naquelas melodias populares em que o cantor sobe de escala até desafinar.
— Eu estou muito doente e o meu marido tem Alzheimer, ele não diz coisa com coisa, não sabe fazer uma conversa! Eu ainda hoje tomei alguns comprimidos.
A mulher contava o dia em que a Polícia lhe entrou em casa, dois guardas. No relatório dos agentes, a senhora gritava
— Ajuda, o meu filho matou o pai!
E, quando entraram na cozinha, viram um velho no chão com a cabeça numa poça de sangue. Julgaram-no morto. O filho teria empurrado com força o pai contra o exaustor. Enquanto o pai supostamente agonizava no chão, o filho ainda gritava com ele, furioso e incompreensível, isso é que chocara os polícias. No entanto, mais tarde a senhora disse (e era o que ouvíamos agora): — Ele... fez um cortezinho aqui atrás.
— E quando a Polícia chegou, ele não estava deitado no chão? — Não, não, ele não caiu ao chão!
— Mas a senhora disse isto ou não? Usou a expressão “preciso de ajuda”?
Às vezes não se percebia bem, as gravações têm momentos maus, como a vida. Uma magistrada do outro lado da fita continuou:
— O seu filho alguma vez disse ao seu marido “és isto, és aquilo?” — Ele às vezes diz que vai bater, mas nunca bateu. Às vezes, quando está cansado! Já tem dito alguns palavrões quando está fora de si, mas não faz mal a ninguém!
Depois explicou que o filho tem o cartão bancário dela porque faz as compras da casa. O filho, de cerca de 50 anos, por um instante coçou os olhos ao ritmo das sílabas da mãe. Foi fiscal de crédito nos correios, despediu-se para tratar dos pais. Depois, a pandemia. Na pandemia, o álcool.
— Não é ele que a proíbe de ir à rua?
— Não, não, eu saio se quiser, mas ele é que vai às compras. O meu filho está inocente, nunca bateu ao pai, nunca bateu à mãe... É um bom filho. O que ele tem é que quando bebe fica um bocado nervoso. Nós sempre fomos com ele a festas e casamentos e ele não bebia, não é um bêbedo de muito tempo. Isto começou há pouco. Talvez nem mais de um ano! E ele quando está com o álcool, fica desnorteado, não sabe o que faz. Fica nervoso, fica excitado. Quando bebe, fica agressivo. Mas isso fica toda a gente, não é só ele!
Uma voz perguntou-lhe se não tinha medo.
— Não. Agora o meu filho, o que ele está a sofrer, eu faço ideia do que sente. Eu agora quero é que se trate para voltar a ser o rapaz que era! Para estar ao pé de mim, que eu não consigo tratar de mim... Já sabe cozinhar, eu fui-lhe ensinando.
O homem — agora de cara nas mãos como um menino —, ajuda-a no banho. Ela entra na banheira em fato de banho.
— Ó mãe, faz de conta que estás na praia!, diz-lhe o homem. Ela fez operação ao coração há oito anos.
— O meu marido, mesmo antes de estar assim, estar ou não estar era a mesma coisa. Nunca tratou do meu bem-estar.
Ouvimos o marido. Um trabalho difícil só para entender que podia negar-se a falar, mas que falando teria de dizer a verdade, etc.
— Ele nunca disse... vou dizer palavras feias, mas vou ter de as dizer... nunca disse para o senhor “olhe, vá para o caralho”? — Não, não, respondeu o velho na gravação.
Que nunca lhe bateu, que nunca lhe fez nada. A advogada do homem alegou, no fim, uma hipótese cheia de sentido. O filho alcoolizara há meses, infelizmente, e tão bêbedo entrou na cozinha que foi ter com o pai para o abraçar de amor, apertado.
— Foi um abraço eufórico!
E o velhote desequilibrou-se e bateu com a cabeça. Foi só isso. Ó mãe, faz de conta que estás na praia. O meu filho afinal não matou o pai.
E viva o 25 de Abril, sempre.