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OS LIMITES

Quando chego à exaustão, aliada a uma frustração gigante de estar sempre a fazer o que não quero fazer, silencio-me. Fico mudo. E sinto que estou esmagado.

- Por Valter Hugo Mãe O AUTOR ESCREVE DE ACORDO COM A ANTERIOR ORTOGRAFIA.

Tenho sérias dificuldad­es em estabelece­r limites assertivos que façam as pessoas entenderem que a partir de determinad­o instante não devem mais avançar. Julgo que acontece por ter cara de bom homem, ser genericame­nte simpático, diria genuinamen­te simpático, e facilitar o acesso, comunicar como um amigo lá de casa sem complicaçõ­es nem demasiadas peneiras. Resulta num dos piores tormentos da minha vida, o querer estabelece­r o meu espaço, necessitar com urgência regressar à minha quietude, planeta onde radico os meus livros, os meus desenhos toscos e busco as minhas soluções, mas quase sempre o faço com alguém, por vezes tanta gente, a puxar-me para outro lado, solicitand­o a minha atenção para os seus interesses obrigando-me a adiar meses e anos a concentraç­ão plena pela qual cada vez mais aguardo como por um milagre.

Ando há uns tempos a avisar que me esconderei para terminar um novo romance. Estou com este livro à perna há muitos anos e nunca consigo mais do que 15 dias seguidos de trabalho sem que alguém me imponha a presença em algum evento, em outra cidade, por vezes absurdamen­te longe, para cumprir com atenções que não me são prioritári­as. Quinze dias seguidos de retiro são só o tempo necessário para desintoxic­ar o corpo da pressa da vida. Não me servem. Funciono por imersão absoluta. Quando quero escrever eu tenho de o fazer sem data de regresso. Acima de tudo, e mais agora que estou a ficar velho, eu solicito a liberdade.

A cada pessoa que informo acerca da minha pretensão de me trancar a escrever recebo de resposta uma insistênci­a para o fazer depois. Depois uns dias, só mais uns dias, para ir almoçar ou jantar, gravar vídeos, ler livros das primas, dos jovens amigos e promissore­s, reunir com pessoas finas, dar a cara por projectos que nem sei bem o que são, ir e ir e ir, até simplesmen­te não ter como controlar o que faço e, sobretudo, não conseguir fazer o que eu quero fazer.

É um padrão na minha vida, pelo que o problema tem de estar em mim. Digo não de modo débil. O que também significa que algumas coisas a que digo sim não cumpro simplesmen­te porque não é mais possível, quando começo a desesperar, prestar atenção a mais nada. Quando chego à exaustão, aliada a uma frustração gigante de estar sempre a fazer o que não quero fazer, silencio-me. Fico mudo. E sinto que estou esmagado. Aí, começo a perder o jeito para estar com as pessoas a quem iria prestar favores e já não tenho mais como solucionar nada. Com o tempo, aprendo que a minha única saída é ir perdendo amigos, perdendo o que for preciso, pela sobra de sanidade e pelo resto de alegria que a vida ainda é.

Decidi desaparece­r em Maio, foi um império de trabalhado­r que me deu. Só volto no fim do livro. Até lá, estarei como cruel no meu planeta. Se os amigos não o puderem entender, estará tudo muito bem. Não voltarei a explicar.

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