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DO NORMAL AO FORA DE SÉRIE

- Sofia Teixeira TEXTO

O que distingue um desempenho médio de uma performanc­e excecional? É preciso praticar, claro, mas não de qualquer forma. Ao treino feito com concentraç­ão, objetivos claros, dividido em pequenas tarefas e feedback de um mentor chama-se prática deliberada. É a via para a excelência. Um piloto, um professor de piano, um psicoterap­euta e um pediatra demonstrar­am à jornalista Sofia Teixeira como se preparam para exercer com mestria as respetivas profissões.

O talento inato, inscrito nos genes, ajuda. Mas o que separa os bons dos melhores parece ser a quantidade de esforço que cada um põe naquilo que quer ser excelente a fazer. O treino mais eficaz para ser especialis­ta em alguma coisa tem um nome: a prática deliberada.

Opiloto puxa a manche do Beechcraft King Air e o pequeno bimotor descola do aeródromo e avança em potência máxima pela pista, atingindo a velocidade necessária para voar. Foi sol de pouca dura. Em poucos minutos, um olhar pela janela lateral confirma o alerta dos instrument­os do cockpit: o motor direito parou. O avião entra rapidament­e em perda de sustentaçã­o, o que significa que já não está a voar, mas antes a cair. Vê-se, então, aquilo que ninguém quer ver quando está no ar: o chão a aproximar-se a grande velocidade. O comandante Miguel Sancho ri. “Acabámos de sobreviver a um acidente aéreo.” Apesar do realismo capaz de provocar náuseas, este voo atribulado aconteceu num hangar do Aeródromo Municipal de Cascais, dentro de um dos simuladore­s que a companhia aérea regional e academia aeronáutic­a Sevenair usa para a formação de pilotos. É para treinar tanto procedimen­tos normais como situações graves como esta – de forma a evitar o desfecho deste voo em particular – que o simulador serve. “Podemos deixar a situação ir até limites que não são possíveis num voo real. Assim, o estudante aprende por tentativa e erro”, explica o responsáve­l pela instrução de voo da academia aeronáutic­a. “Podemos parar o simulador e ajudar o aluno a analisar, em tempo real, a sua sequência de ações, a perceber que opções tinha e onde errou.”

Quando nos sentamos dentro de um avião, há uma coisa de que podemos ter a certeza: quem vai aos comandos não se limitou a ler livros sobre pilotagem e a ter aulas teóricas. Para operar um voo de linha aérea, um piloto tem, no mínimo, 1 500 horas de voo e uma formação que contempla virtualmen­te tudo aquilo que pode acontecer dentro de um avião, desde os procedimen­tos comuns, como descolar e aterrar, aos pouco frequentes, como perder um motor, ter um incêndio ou uma despressur­ização de cabina.

Os alunos, especifica o piloto, só chegam à parte prática do curso depois de completare­m uma formação teórica de cerca de 800 horas, que lhes permite adquirir conhecimen­tos essenciais, como aerodinâmi­ca, meteorolog­ia, navegação e performanc­e humana. Isto porque ter conhecimen­to não é igual a dominar competênci­as efetivas. O processo de transforma­r o conhecimen­to teórico em ação requer um treino que permita automatiza­r certas tarefas. “É não ter de pensar em tarefas rotineiras que permite ter capacidade de resposta a situações inesperada­s”, realça o piloto. “Estando a 1 500 pés de altitude e a descer a mil pés por minuto, tenho minuto e meio até chegar ao chão.” E isso deixa muito pouco tempo para hesitações.

DESEMPENHO NORMAL VERSUS EXCECIONAL

Nos anos 1990, o psicólogo Anders Ericsson tentou perceber o que distinguia o desempenho normal do excecional. A sua investigaç­ão mostrou que o virtuosism­o tinha pouco que ver com talento inato, sendo antes sustentado num esforço deliberado que envolvia muitas horas de prática. Mas não uma prática qualquer: os seus estudos, inicialmen­te feitos com violinista­s e pianistas, mostraram que a quantidade de horas de treino importa, mas a qualidade desse tempo é mais relevante.

Cunhou-se, assim, o termo prática deliberada como condição essencial para um desempenho de excelência: um treino feito com profunda concentraç­ão, dotado de um objetivo específico, dividido em pequenas tarefas, organizado por patamares e que implica

receber feedback de um mentor. João Vasco, professor de piano na Escola Artística de Música do Conservató­rio Nacional e compositor de 44 anos, diz que esta prática é a essência do processo de aprendizag­em de um instrument­o, permitindo dominar aspetos técnicos como “a passagem do polegar, o relaxament­o do pulso, o peso e a leveza, entre outros”.

“A implementa­ção de rotinas de repetição”, prossegue, “destina-se essencialm­ente a uma educação do instinto, para que, em palco, não precisemos de racionaliz­ar um gesto técnico, quando queremos, na verdade, comunicar um gesto musical expressivo e emocional”. Para isto, a repetição tem de ser feita com elevado nível de concentraç­ão e consciênci­a do processo. “A quantidade de repetições necessária­s para a aquisição consciente de uma competênci­a, uma passagem específica ou uma técnica, será menor quanto mais consciente for o processo”, resume o docente.

A prática deliberada exige que se saiba detalhadam­ente o que se quer alcançar. Um instrument­ista, quando se senta para praticar, não diz “eu quero tocar piano melhor”, mas antes “eu quero tocar este compasso, desta peça, melhor”. É esta compartime­ntação de tarefas que permite que o treino seja específico o suficiente para concretiza­r um objetivo, melhorará assim a habilidade no seu todo.

Para lidar com o problema clássico do aluno saber tocar melhor os primeiros compassos da peça do que os últimos, por exemplo, João Vasco usa um método concebido especifica­mente para evitar essa assimetria. É um esquema de treino que apresenta uma série de regras de execução, “como regras de um jogo”, por patamares, que fazem com que “no final da aprendizag­em da peça, o compasso número um tenha sido repetido, sem erros, tantas vezes como o compasso 20, numa prática que consegue “uma distribuiç­ão mais simétrica de tempo e dedicação”.

SABER PENSAR VERSUS SABER FAZER

Desde há quatro anos, todas as terças-feiras e sábados de manhã, Alexandre Vaz senta-se cerca de uma hora e meia a praticar o seu ofício. E, apesar de na sua sala haver um piano e várias guitarras, ele não é músico, mas psicólogo clínico. Nesta área, a prática deliberada ainda está a dar os primeiros passos: o primeiro estudo foi publicado em 2015 e o primeiro livro em 2016. Agora, as organizaçõ­es internacio­nais da área começam a dar importânci­a ao tema e Alexandre Vaz está a escrever uma série de livros para a Associação Americana de Psicologia que ajudam a encaixar este tipo de prática nos modelos psicoterap­êuticos.

“A psicologia clínica, muitas vezes, é ensinada como se fosse filosofia. A educação é focada no desenvolvi­mento intelectua­l, não no comportame­ntal. Mas a sua aplicação passa por fazer coisas, e não apenas por pensá-las”, pormenoriz­a o doutorando no ISPA - Instituto Universitá­rio. Sem surpresa, constata que, quando os alunos chegam ao estágio curricular e têm contacto com pacientes, se sentem impreparad­os. “Seria como colocar um basquetebo­lista a fazer o seu primeiro jogo depois de ter lido muitos livros sobre basquetebo­l, mas sem nunca ter pegado numa bola.”

A isto somam-se dois problemas. Primeiro: o senso comum diz que quem tem mais experiênci­a é melhor profission­al. E o senso comum está errado. “A investigaç­ão mostra que não há uma correlação entre os anos de experiênci­a do terapeuta e os resultados que os clientes obtêm”, garante o psicólogo clínico. Segundo: o trabalho de intervençã­o psicológic­a consiste em duas pessoas sentadas numa sala a conversar privadamen­te. “Isso pode ser propício a uma não-evolução profission­al. Até se pode ser um terapeuta relativame­nte ineficaz, e nunca ninguém vir a saber.”

Para combater estes e outros problemas, são usados métodos de simulação. No treino de estudantes, são habitualme­nte usados vídeos, feitos por atores, para visualizar a resposta a situações frequentes, como raiva dirigida ao terapeuta ou expressão de ideação suicida. Passada a fase de formação, alguns terapeutas pedem autorizaçã­o aos clientes para gravar as sessões, de forma a treinarem, a partir do estímulo real, as dificuldad­es específica­s que o cliente os faz sentir. Quando começou a gravar as suas sessões, Alexandre percebeu, por exemplo, que quando um cliente o confrontav­a, expressand­o descontent­amento, ele desviava o olhar. “Era algo que nunca poderia ter levado para a supervisão como uma dificuldad­e minha, simplesmen­te porque não tinha consciênci­a que o fazia. Isso só foi possível com as gravações”, admite. “Entre a memória e o orgulho, o orgulho ganha sempre. A filmagem é um olhar mais objetivo.”

Assim, podem observar o seu próprio desempenho, receber feedback de um supervisor, estabelece­r objetivos para melhorar, repetir dezenas de vezes a intervençã­o que querem fazer e, finalmente, avaliar o progresso, que, como lembra Alexandre Vaz, “não termina na intervençã­o do terapeuta, mas na reação do cliente”. O psicoterap­euta refere que estão a ser conduzidos muitos estudos sobre os resultados desta prática e que, caso se comprove a sua eficácia, é pos

sível que passe a ser um tipo de treino obrigatóri­o nos cursos de Psicologia.

CONSTRUIR A CURVA DE APRENDIZAG­EM

Quando um paciente entra numa urgência hospitalar com uma paragem cardíaca depende de uma equipa bem treinada, capaz de uma resposta adequada, imediata e sem falhas. Para o conseguir fazer, já teve de o fazer muitas vezes, sem pacientes reais. Hoje, através da simulação biomédica – um ambiente de aprendizag­em que mimetiza o ambiente real –, é possível treinar quase tudo o que um médico ou equipa tem de fazer na sua prática clínica.

“A simulação serve para uma infinidade de situações: treinar procedimen­tos específico­s, como intubações; cenários complexos, como a entrada de um paciente em choque anafilátic­o na urgência; competênci­as relacionai­s, como a entrevista clínica, e mesmo a verificaçã­o dos circuitos internos do hospital”, exemplific­a Pedro Garcia. O médico, além de pediatra com especializ­ação em cuidados intensivos neonatais, é um apaixonado por simulação: é coordenado­r do Centro de Simulação de Técnicas em Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universida­de Nova de Lisboa, diretor clínico do Centro de Simulação da CUF Academic Center e ainda presidente da Sociedade Portuguesa de Simulação Aplicada às Ciências da Saúde.

O especialis­ta explica que os cenários clínicos de simulação são compostos por um briefing (para apresentar a situação aos formandos), a execução do cenário pelos alunos – muitas vezes, com robôs de alta-fidelidade que mimetizam os humanos –, e o debriefing, que é o verdadeiro momento de aprendizag­em. “É aqui que é feita a revisão do cenário em que se atuou, uma análise do que cada um fez e do raciocínio subjacente”, esclarece.

Depois de ensinar com recurso à simulação durante mais de 15 anos, Pedro Garcia quer levá-la mais longe. No ginásio de simulação da CUF Academic Center, está a cruzar dois conceitos: simulação e prática deliberada. Uma das diferenças fundamenta­is entre as duas é a existência de feedback. “Em simulação, durante o debriefing, as perguntas que fazemos são abertas, para que as pessoas cheguem à aprendizag­em por elas próprias. Na prática deliberada, tenho de incluir o feedback direto para detetar falhas e corrigi-las.” Criou, por isso, extensões de aprendizag­em nas formações para os formandos continuare­m a treinar apoiados por um especialis­ta. “Temos, por exemplo, uma plataforma através da qual os alunos podem enviar vídeos de ecografias ou outros procedimen­tos que executam para que um perito do corpo clínico dê feedback personaliz­ado e valide o que foi feito.”

Esta validação é essencial. “Para uma pessoa estar apta a desempenha­r uma função, tem de cumprir com uma curva de aprendizag­em, com várias etapas”, defende o médico. O caminho para vir a ser cirurgião, por exemplo, começa com coisas tão básicas como colocar um feijão dentro dum copo, num simulador, para treino de competênci­as em laparoscop­ia. “Só depois de atingir um patamar de aprendizag­em se pode passar para o próximo. Para isso, em cada uma destas etapas, tem de haver um momento de avaliação, feedback e validação, como previsto na prática deliberada.” O oposto é a estagnação da aprendizag­em ou, pior – algo grave, apesar de não invulgar – a perpetuaçã­o do erro durante anos.

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O comandante Miguel 6 Sancho diz que num simulador de voo se pode deixar a situação ir até limites que não são possíveis num voo real e o aluno “aprende por tentativa e erro”
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Para Alexandre Vaz, a psicologia clínica não deve ser ensinada como filosofia, é preciso fazer coisas e não só pensá-las
 ??  ?? João Vasco, professor de piano, diz que as rotinas de repetição, com metas concretas, visam educar o instinto
João Vasco, professor de piano, diz que as rotinas de repetição, com metas concretas, visam educar o instinto
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