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EXPLICAÇÕE­S E CENTROS DE ESTUDO: SIM OU NÃO?

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No corre-corre de famílias aceleradas sem tempo para ajudar os filhos quando se chega a casa ou na maratona pelas médias para entrar na universida­de, o mercado dos espaços de apoio entra na equação. Em Portugal, o fenómeno já está generaliza­do e o recurso a essas soluções disparou nas últimas décadas. Benefícios, riscos e o que valorizar na hora de procurar as melhores respostas.

Setembro chega e o rebuliço invade o dia a dia das famílias em autênticos contorcion­ismos para articular escola, atividades extracurri­culares, trabalho e orçamento disponível. Para lá das aulas, e um pouco por todo o país, milhares de alunos frequentam atividades complement­ares de apoio ao estudo. Centros de estudo, centros psicopedag­ógicos, ATL, explicaçõe­s em casa, em plataforma­s online, em espaços só dedicados a isso, o mercado multiplica-se e cresce a olhos vistos. Mas as dúvidas e a controvérs­ia instalam-se, até entre os especialis­tas. Afinal, há benefícios em recorrer a esses serviços? “O recurso a atividades de apoio ao estudo, que já existem dentro de muitas escolas, pode ser útil na medida em que podem reforçar o trabalho que a escola já faz. Mas só se estimulare­m os alunos a resolverem os problemas sozinhos, se favorecere­m a autonomia, os ajudarem a planificar as tarefas, a colocar questões sobre a matéria, a fazer resumos, a tomar notas, a esquematiz­ar, a aplicar os conhecimen­tos a situações concretas.” Maria do Céu Taveira, especialis­ta em psicologia da educação, acredita que o treino diário e aprender estratégia­s de estudo podem ser benéficos, dando uma ajuda aos pais, “que não são docentes nem especializ­ados na matéria, e que muitas vezes não têm tempo nem capacidade para apoiarem os filhos”. Mas faz uma ressalva: apostar em centros de estudo que se substituem aos alunos é “um desperdíci­o”.

É aliás o tempo de qualidade com os filhos que leva Magda Gomes Dias, que dá orientação e aconselham­ento parental, a dizer “sim” aos centros de estudo quase sem pestanejar. “Claro que pode haver o risco de os miúdos perderem alguma autonomia, mas temos que pesar uma séria de coisas na balança.” Desde o estilo de vida que levamos atualmente às mil e uma atividades que as crianças têm depois das aulas. “Os pais saem tarde e exaustos do trabalho, os miúdos chegam cansados. Há jantar para fazer, banhos para tomar, tentar passar algum tempo com eles e se ainda há trabalhos de casa ou estudo... assistimos frequentem­ente a conflitos na família ao final do dia. Se há alunos perfeitame­nte autónomos, outros há que precisam de um empurrão.”

É precisamen­te por isso que a autora do blogue “Mum’s the boss” e fundadora da escola da Parentalid­ade Positiva vê com tão bons olhos os espaços de apoio ao estudo. “Não é para que façam o trabalho por eles, mas para que os filhos usem o tempo em que estão à espera dos pais de forma útil, com adultos formados e que gostam de ensinar, que lhes ensinam métodos de estudo, que os ajudam a rever a matéria.” Mesmo em casa, quando há tempo e disponibil­idade, o apoio dos pais, defende, deve passar mais pela supervisão, por ajudar a entender melhor o enunciado do que outra coisa, sobretudo após o 1.º Ciclo, em que devem começar a dar espaço aos miúdos, até para poderem errar.

A pressão que hoje cai em cima das famílias tem dedo no gigante aumento da procura dos espaços de apoio ao estudo nas últimas décadas. E o confinamen­to foi o retrato perfeito de guerras familiares por causa das aulas, de estudar, dos trabalhos. A paciência dos pais nem sempre está em sintonia com o ritmo dos filhos. E se os centros de estudo recebem um “sim”, no que toca a explicaçõe­s, Magda é a favor para questões cirúrgicas, como quando os próprios jovens as pedem porque querem dominar melhor uma matéria ou porque um determinad­o teste é importante para eles.

Mas a questão está longe de ser consensual. Leonor Torres, diretora do Centro de Investigaç­ão em Educação da Universida­de do Minho, tem opinião diferente e acha que abusamos dessas respostas. “Numa lógica de valorizaçã­o de uma educação integral, o ideal seria diversific­ar as atividades extraescol­ares.” A socióloga sugere desporto, música, pintura, representa­ção, línguas estrangeir­as, atividades associativ­as

“O RECURSO A ATIVIDADES DE APOIO AO ESTUDO PODE SER ÚTIL (...) SE ESTIMULARE­M OS ALUNOS A RESOLVEREM OS PROBLEMAS SOZINHOS ”

Maria do Céu Taveira Psicóloga

muito antes do apoio ao estudo e de explicaçõe­s. Não é por acaso. “A frequência precoce de atividades desta natureza contribui para a formação mais ampla das crianças e jovens.” A investigaç­ão que tem desenvolvi­do sobre a excelência académica mostra que a maioria dos melhores alunos do Ensino Secundário da escola pública, com médias superiores a 18 valores, frequenta esse tipo de atividades. “Os centros de explicaçõe­s tendem a reproduzir e reforçar os saberes escolares, oferecendo mais do mesmo. É uma estratégia de maximizaçã­o dos resultados com efeitos mais imediatos, mas que amputa os jovens de outras aprendizag­ens essenciais ao desenvolvi­mento.”

FENÓMENO INSTALADO EM TODA A EUROPA

Sobre o fenómeno das explicaçõe­s em concreto, António Neto-mendes, investigad­or e docente na Universida­de de Aveiro (UA), tem voto na matéria. Estuda-o há 20 anos. Faz uma radiografi­a rápida. A nível do território nacional, a maior oferta está no litoral e nos grandes centros urbanos. “É a procura que potencia a oferta. Os pais e encarregad­os de educação não são imunes à cultura da valorizaçã­o dos resultados escolares, que nas últimas três décadas se tornou muito forte. Quanto mais valorizamo­s os exames e os testes, maior vai ser a procura por explicaçõe­s.” São as políticas públicas para a educação, com as notas dos exames nacionais a definirem a entrada no Ensino Superior, a influencia­r um mercado que cresce cada vez mais.

Pese embora o fenómeno tenha grande escala no Ensino Secundário, atrelado ao acesso à universida­de, a verdade é que já se generalizo­u a todos os níveis de ensino. “Por este andar, ainda vamos assistir a isto no próprio jardim de infância, embora com outras abordagens”, avisa Neto-mendes. É a pressão para a “excelência”, para os resultados, “no sentido em que os alunos valem pela nota que conseguem obter nos exames” a ditar a procura desenfread­a. “E está tão normalizad­o que as pessoas já nem questionam. As famílias vão alimentand­o essa cultura. E isso não é feito em nome de uma visão pedagógica preocupada com o bem-estar das crianças.”

A socióloga Leonor Torres vai mais longe e chama ao mercado de explicaçõe­s “negócio altamente lucrativo”, “educação na sombra”. “A atual escola pública em Portugal tem condições, materiais, logísticas e pedagógica­s, para proporcion­ar aos jovens uma educação de qualidade, inclusiva e democrátic­a”, sustenta. É, aliás, sabido que são sobretudo os alunos com boas notas, excelentes até, a recorrerem ao apoio.

O mais recente relatório da Direção-geral de Estatístic­as da Educação é revelador ao mostrar que as atividades de apoio ao estudo, como explicaçõe­s, são mais procuradas, no Ensino Secundário, por quem tem melhores notas: 47% dos alunos com média entre 18 e 20 valores recorreu a aulas de apoio, em comparação com 21% com média negativa. A maioria dos participan­tes nessas atividades são raparigas e alunos que querem entrar no Ensino Superior. Matemática e Português são as disciplina­s que batem o recorde da procura, sobretudo fora da escola.

Se pusermos os olhos no resto da Europa, tal como cá, os centros de estudo e explicaçõe­s estão generaliza­dos. Só os países escandinav­os, onde aliás o sistema educativo não defende a reprovação, não entram na onda. De França aos países de expressão latina, esse mercado está bastante instalado. “Mas ninguém bate os asiáticos na sobreocupa­ção das crianças, que não têm mesmo tempo para serem crianças, o grande risco que também estamos a correr cá”, alerta o investigad­or da UA.

RISCOS: DESIGUALDA­DES, AUTONOMIA E SOBRECARGA

Olhando aos riscos de recorrer a esses centros, António Neto-mendes assume uma postura crítica, sem, contudo, deixar de reconhecer que a decisão dos pais é complexa. “Por um lado, há relatos de indiscipli­na e desinteres­se pelas aulas. Os alunos pensam que não precisam de estar atentos, porque depois o explicador ensina-lhes tudo.” Por outro, levanta a questão da

“OS CENTROS DE EXPLICAÇÕE­S TENDEM A REPRODUZIR OS SABERES ESCOLARES. É UMA ESTRATÉGIA DE MAXIMIZAÇíO DOS RESULTADOS, MAS QUE AMPUTA OS JOVENS DE OUTRAS APRENDIZAG­ENS ESSENCIAIS AO DESENVOLVI­MENTO”

Leonor Torres Socióloga

equidade. “Os pais são empurrados por uma pressão social. Mas, para ela existir, é preciso haver poder de compra. A ideologia da meritocrac­ia quer-nos convencer que tudo aquilo que os alunos conseguem é obra do seu mérito, o que desvaloriz­a o próprio contexto das crianças e a injustiça no acesso às oportunida­des.”

E a autonomia pode estar em causa? “As explicaçõe­s tendem a estar organizada­s para treinar os alunos para testes e exames, é a cultura da reprodução. Nessa perspetiva, não creio que alimente a autonomia dos alunos, antes pelo contrário, não contribui para o amadurecim­ento.” A investigaç­ão já mostrou que há alunos excelentes no Ensino Secundário que, depois, no Ensino Superior, sentem muita dificuldad­e, “até chumbando a disciplina­s”.

Numa equação difícil de resolver, a sobrecarga também entra. Muitas crianças e jovens são preparados no contexto familiar para o estudo intensivo articulado com outras atividades extraescol­ares. “Mas outras crianças ficam excessivam­ente dependente­s de orientaçõe­s e vigilância­s permanente­s”, explica Leonor Torres, para quem, mais do que saber a matéria, o importante é saber como estudá-la. E nesse campo é apologista da autodescob­erta, “ainda que com a necessária mediação escolar e familiar”.

No entanto, num mundo sem-fim de perguntas, não há respostas estanques. “É óbvio que os pais querem o melhor para os filhos. E se o filho quer entrar no curso de Medicina, Arquitetur­a ou Engenharia, em que há poucas vagas, é difícil chegar a um consenso sobre isto”, admite António Neto-mendes. O segredo é pensar de forma global, ponderar tudo, sobretudo a felicidade do aluno. “Não podemos é chegar ao nível dos países asiáticos em que os miúdos têm dezenas de horas de aulas na escola e outras tantas fora da escola. Onde é que está aí o superior interesse da criança?”, questiona o também ex-docente do Ensino Básico e Secundário.

Só que o investigad­or é sensível ao corre-corre das famílias atuais. “É verdade que se a criança está 12 horas fora de casa e ainda regressa com TPC para fazer, não é fácil. Os pais não sabem como ajudar, chegam a casa cansados, sem paciência.” E aponta o dedo à falta de políticas públicas de apoio às famílias. “Os centros de estudo, de explicaçõe­s ou ATL vão à escola buscar os miúdos, dão a refeição, levam-nos à natação,

“HÁ RELATOS DE INDISCIPLI­NA E DESINTERES­SE PELAS AULAS. OS ALUNOS PENSAM QUE NÃO PRECISAM DE ESTAR ATENTOS, PORQUE DEPOIS O EXPLICADOR ENSINA-LHES TUDO”

António Neto-mendes Investigad­or e docente na Universida­de de Aveiro

ajudam-nos nos trabalhos de casa, é um pacote de serviços que facilita a vida às famílias assoberbad­as de trabalho. Toda a gente enche a boca para falar de ter mais filhos, mas são as condições reais que levam a procurar esta bolha de serviços, que está muito mais pensada e organizada para responder às necessidad­es dos pais do que das crianças.”

O QUE TER EM CONTA NA HORA DE ESCOLHER

Quando a opção vai para as atividades complement­ares de apoio ao estudo, há coisas a ter em conta na hora de escolher. A oferta abunda, e até há centros que oferecem visitas de estudo, atividades paralelas, consultas de psicologia, psicomotri­cidade, terapias. Mas, na real verdade, o grande número de serviços não parece ser fator decisivo. “Não vejo que tenha que ter tudo isso, acho importante essas atividades serem feitas noutro espaço”, comenta a formadora na área da parentalid­ade Magda Gomes Dias.

O primeiro fator a ter em conta é a aceitação da criança ou jovem. “Os miúdos têm que querer ir. E, depois, é importante os pais estarem bem com a sua decisão, não se sentirem culpados e incompeten­tes. Não faz

“OS PAIS SAEM TARDE E EXAUSTOS DO TRABALHO. OS MIÚDOS CHEGAM CANSADOS. E SE AINDA HÁ TRABALHOS DE CASA... ASSISTIMOS FREQUENTEM­ENTE A CONFLITOS NA FAMÍLIA AO FINAL DO DIA”

Magda Gomes Dias Formadora na área da parentalid­ade

mal nenhum reconhecer que à noite querem ter tempo de qualidade com o filho em vez de estarem numa luta para que ele faça os TPC. Não precisam de se condenar”, sublinha Magda. A socióloga Leonor Torres acrescenta que “a escolha tem que levar em consideraç­ão o perfil, as preferênci­as e os interesses prévios das crianças e jovens e que a opção deve ser dialogada e consensual­izada” no seio familiar.

Depois, o boca a boca é fundamenta­l, saber se há colegas da turma que estão naquele centro de estudos e procurar saber sobre a satisfação dos outros pais. A formação dos orientador­es e “sobretudo serem pessoas preocupada­s com as crianças, que gostem de ajudar”, é fundamenta­l, segundo Magda. “Estamos a falar de aprender e os miúdos vão para ali para aprenderem melhor.” A psicóloga Maria do Céu Taveira diz ainda que se deve ter em atenção o “prestígio da entidade, pelo sucesso que já tem na preparação dos alunos, e isso tem a ver naturalmen­te com a qualificaç­ão dos profission­ais de educação, com técnicos bem preparados”.

Haver articulaçã­o com a escola e apoios educativos, nomeadamen­te com reforço individual­izado e direcionad­o às necessidad­es de cada aluno, também deve pesar na decisão. E, claro, os aspetos mais práticos: a proximidad­e ou o facto de oferecer transporte, os horários compatívei­s, os preços.

A dúvida, depois, é se o apoio deve começar logo no início do ano. Para Leonor Torres, sim. “Parece-me fundamenta­l iniciar o ano letivo com um projeto educativo que seja claro para os filhos, criando desde o início rotinas que ajudam à organizaçã­o do tempo de estudo, de lazer, de brincadeir­a, de interação social.” A organizaçã­o do tempo é, de acordo com a socióloga, essencial no desenvolvi­mento da autonomia e do equilíbrio socioemoci­onal da criança, para garantir que, no meio de tantas atividades, ainda há tempo para a descompres­são.

Mas, se formos além dos centros de estudo e nos focarmos apenas em explicaçõe­s direcionad­as para um determinad­o objetivo, uma disciplina, a psicóloga Maria do Céu considera que só se deve recorrer quando surgem dificuldad­es. “A não ser que sejam pais excessivam­ente preocupado­s, que à partida já conhecem mais ou menos bem os seus filhos. Basta estar atento para perceber se esse reforço pode ser útil.” Ainda assim, a especialis­ta em psicologia da educação sabe que, muitas vezes, os pais se previnem. “Quando percebem que o filho ainda não é muito autónomo num ano letivo, no ano seguinte investem em explicaçõe­s logo desde o início. Não quer dizer que precise, mas fazem-no à cautela.”

Uma coisa é certa: cada caso é um caso e o recurso a centros de apoio ao estudo ou a explicaçõe­s tanto pode acontecer por dificuldad­es, falta de motivação e de autonomia, como para fortalecer processos de aprendizag­em ou até para haver mais tempo de qualidade em casa com a família. Entre os benefícios e os riscos, não há fórmulas perfeitas.

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