A Revolução revisitada
Passados 40 anos a recordação da Revolução das Flores ainda não se converteu naquela espécie de não acontecimento que não se pode invocar. Pelo menos até agora. Mas 40 anos depois a nossa memória transfigurou-a e mudou-a aos olhos de alguns a ponto de torná-la irreconhecível. Por isso convém, e é urgente, volver sobre esse momento de rutura que instaurou entre nós a democracia e abriu um campo de possibilidades em todos os domínios, desde a economia à cultura, do qual todos somos devedores.
O que permanece dos nossos amores, das nossas esperanças, dos nossos sonhos que há 40 anos explodiram, como surpresa, não só no céu português como no céu europeu? A opinião pública europeia - e em particular da França, a que nos unem tantos laços intelectuais e ideológicos - acompanhou com paixão e expectativa o que se passava no pequeno país da extrema Europa tido como tranquilo e ordeiro, mas em boa verdade sem compreender bem esta estranha Revolução feita por militares, com a flor nas espingardas, que, de súbito, depois de ter posto fim a uma ditadura conservadora de quase meio século, se propunha converter numa Revolução social, desafiando em toda a inocência o status quo político e social do Ocidente.
De que se tratava? Do primeiro sinal de uma transformação política europeia sob o signo de um socialismo de tipo novo ou de um fenómeno de regressão histórica sob forma de última ilusão lírica revolucionária destinada a estatelar-se nos umbrais do mundo - o nosso -, no qual toda a herança social e política do século XIX começava a revelar sinais de um esgotamento fatal e irreversível?
Durante dois anos, a Europa inteira, privada de sonhos revolucionários desde a guerra de Espanha, pôs-se a sonhar, por Portugal interposto, os sonhos floridos que entre nós tínhamos cultivado segundo os modelos culturais, políticos e utópicos que essa mesma Europa nos tinha inspirado durante a larga travessia do regime anti-democrático de Salazar e Caetano. O que aconteceu entre nós durante esse período lembra um jogo de espelhos em que o observador e o observado, Europa e Portugal (o olhar da
Durante dois anos, a Europa inteira, privada de sonhos revolucionários desde a guerra de Espanha, pôs-se a sonhar, por Portugal interposto, os sonhos floridos que entre nós tínhamos cultivado
América é de outra espécie), trocavam entre si as mesmas utopias, as mesmas esperanças, os mesmos temores, sob ângulos diferentes, sem saber exatamente a que jogavam. Nós, portugueses, atores e espectadores dessas inauditas perspetivas, não tínhamos nesse jogo um papel privilegiado. Mas uma revolução é talvez isso: não se sabe para onde se vai, mas segue-se em frente, por fidelidade a sonhos mais poderosos do que cada um de nós.
De facto, de onde vinha a nossa revolução? E para onde ia? Nos começos dos anos 70 a nossa situação representa para muita gente ora um anacronismo histórico, ora um escândalo, ora as duas coisas ao mesmo tempo, tanto no plano interno como no externo. Para um certo número de portugueses, ávidos de liberdade e democracia, um enigma e um pesadelo de que não conseguiam sequer imaginar o improvável fim que, num relâmpago, a Revolução de Abril materializou.
NÃO PARECIA HAVER MOTIVOS para que aquilo que se tinha mantido durante meio século não se prolongasse. Em 1970, Portugal é a mais velha ditadura europeia, solidamente implantada apesar dos sobressaltos que a faziam estremecer periodicamente. No plano exterior, era a única potência colonial que recusava ainda encarar e, menos ainda, admitir o que outros impérios muito mais poderosos - a Inglaterra e a França - já tinham admitido, quer dizer, a Descolonização.
Todavia, pouco tempo depois, a primeira e última nação colonizadora europeia vê-se reduzida ao seu espaço do século XV, e o mais orgânico dos regimes antidemocráticos do Ocidente vê-se convertido, após algumas peripécias, numa democracia. Nenhuma nação do Ocidente conheceu durante a década de 70-80 um abalo semelhante. Em qualquer outro país, tudo o que há 40 anos teve lugar entre nós após o momento eufórico da libertação - em particular a renúncia a um império colonial de meio milénio de duração - teria provocado, sem dúvida, não apenas um dilaceramento no mero plano político como um traumatismo profundo.
Nada nos aconteceu de parecido. Ao cabo de 13 anos de Guerra Colonial, o nosso velho império revelou-se um encargo de que era imperativo libertarmo-nos. Esse foi o motivo próximo da Revolução de Abril. Mas a evolução da Europa, os verdadeiros interesses dos nossos atores económicos iam na mesma direção. De certo, o sentimento de fracasso, ao mesmo tempo histórico e ético, criado pela maneira como pusemos fim aos nossos sonhos imperiais, subitamente anacrónicos, e a forma como o processo de Descolonização se desenrolou - podia ter sido outro? - deixaram os seus vestígios na vida e na memória portuguesas posteriores ao 25 de Abril.
MAS TUDO ISSO CONTOU POUCO diante da urgência - antes de mais para as mesmas Forças Armadas - de se libertar de uma guerra levada a cabo com má consciência (como a viveram e evocaram alguns dos mais decisivos atores e pensadores do 25 de Abril, entre eles Melo Antunes), e de instaurar e restaurar as liberdades cívicas, institucionalizando uma Democracia segundo o modelo ocidental. Para que uma vez liberto do antigo fardo glorioso, Portugal pudesse desempenhar na Europa, então em construção, um papel capaz de compensar a sua nova realidade de pequeno país, privado daí em diante da sua dimensão imperial.
O regresso ao antigo lar lusitano foi-nos imposto pela força das coisas; a entrada na Europa, por considerações ao mesmo tempo políticas e económicas, cuja imperiosa necessidade ninguém sentiu e exprimiu com mais convicção do que o então líder do Partido Socialista, Mário Soares, que como Presidente cumprirá esse (até há pouco) sonho capital do 25 de Abril. Era preciso amarrar um Portugal onde então forças e tendências pouco democráticas continuavam vivas, a um conjunto de forte coerência democrática. Em suma, embarcar, por assim dizer, na barca da Europa democrática.
Qualquer que seja o juízo que façamos, quer sobre as peripécias de uma revolução que entrou cedo na mitologia da esquerda europeia, quer sobre a estabilização enquanto democracia parlamentar de tipo clássico, incluso sobre a nossa adesão e integração no processo da construção europeia, Portugal mudou de rosto. Ou antes, conheceu tais mudanças de ordem estrutural e material, devido ao facto mesmo
A grande questão, a que merece ainda ser colocada, hoje em dia, em tempo de crise, nacional e europeia, é esta: adquirimos, para além das aparências, esse rosto novo que a memorável Revolução nos teria dado?
desse começo de integração, que o menos que se pode dizer é que já não somos o que éramos há 40 anos. Depois de um momento de perplexidade, em pouco tempo, operámos uma conversão do nosso projeto histórico de que se conhecem poucos antecedentes. Fizemola “à portuguesa”, sem drama, habituados como estamos, desde há séculos, a fazer da necessidade, virtude.
A grande questão, a que merece ainda ser colocada, hoje em dia, em tempo de crise, nacional e europeia, é esta: adquirimos, para além das aparências, esse rosto novo que a memorável Revolução nos teria dado?
DURANTE SÉCULOS, SER PORTUGUÊS significava implicitamente sentir-se filho de um país colonizador e, por essa razão, dotado de uma espécie de identidade universal imaginária. Agora, que com excelentes motivos, não nos podemos prevalecer deste rosto imaginário, em que é que nos convertemos? Estamos na Europa, mas custa-nos, a nível simbólico, definir-nos como europeus. O “europeísmo” não acrescenta nada - por enquanto - àquilo que nos sentimos ser. Sobretudo, não substituiu a inscrição no espaço, ao mesmo tempo onírico e real, que nos fez sonhar durante 500 anos.
E isto leva, para terminar, ao único tipo de carência que, ao fim destes 40 anos de pós-revolução de Abril, se pode assimilar a uma certa desilusão que toca o coração mesmo da Revolução e da histórica Revolução. A democracia foi legitimada; os seus efeitos na vida política e quotidiana dos cidadãos são inegáveis, por mais que a crise atual a ensombre. Vivemos num país livre e só aqueles que não conheceram nunca o custo de ter passado largos anos - ou toda uma vida - numa não-democracia, podem considerar estas regalias como formais ou desprezíveis. Todavia, de certo modo, a nossa democracia é ainda ao cabo de 40 anos uma espécie de regime sem nome.
Queremos dizer com isto que a Revolução - a de todos nós que ela restituiu ao gozo de uma cidadania adulta e, naturalmente, aqueles que historicamente foram os seus atores por a terem desejado e sonhado - não suscitou ainda um verdadeiro imaginário, como outrora o da Monarquia, o da primeira República e, mesmo, do Estado Novo.
Só o seu momento inaugural permanece vivo e recebeu na véspera da sua celebração, a primeira das suas evocações fictícias apta a converter, ou ser já, uma memória viva e realmente “memorável”. Esperamos que esse retrato mitificado desse momento, para nós sempre presente, nos abra a porta para esse imaginário ausente que até hoje nos faltava para enterrarmos dignamente o imaginário de séculos que a mesma Revolução, em nome de exigências agora universais, sepultou para sempre.