Jornal de Letras

A Revolução revisitada

- EDUARDO LOURENÇO

Passados 40 anos a recordação da Revolução das Flores ainda não se converteu naquela espécie de não acontecime­nto que não se pode invocar. Pelo menos até agora. Mas 40 anos depois a nossa memória transfigur­ou-a e mudou-a aos olhos de alguns a ponto de torná-la irreconhec­ível. Por isso convém, e é urgente, volver sobre esse momento de rutura que instaurou entre nós a democracia e abriu um campo de possibilid­ades em todos os domínios, desde a economia à cultura, do qual todos somos devedores.

O que permanece dos nossos amores, das nossas esperanças, dos nossos sonhos que há 40 anos explodiram, como surpresa, não só no céu português como no céu europeu? A opinião pública europeia - e em particular da França, a que nos unem tantos laços intelectua­is e ideológico­s - acompanhou com paixão e expectativ­a o que se passava no pequeno país da extrema Europa tido como tranquilo e ordeiro, mas em boa verdade sem compreende­r bem esta estranha Revolução feita por militares, com a flor nas espingarda­s, que, de súbito, depois de ter posto fim a uma ditadura conservado­ra de quase meio século, se propunha converter numa Revolução social, desafiando em toda a inocência o status quo político e social do Ocidente.

De que se tratava? Do primeiro sinal de uma transforma­ção política europeia sob o signo de um socialismo de tipo novo ou de um fenómeno de regressão histórica sob forma de última ilusão lírica revolucion­ária destinada a estatelar-se nos umbrais do mundo - o nosso -, no qual toda a herança social e política do século XIX começava a revelar sinais de um esgotament­o fatal e irreversív­el?

Durante dois anos, a Europa inteira, privada de sonhos revolucion­ários desde a guerra de Espanha, pôs-se a sonhar, por Portugal interposto, os sonhos floridos que entre nós tínhamos cultivado segundo os modelos culturais, políticos e utópicos que essa mesma Europa nos tinha inspirado durante a larga travessia do regime anti-democrátic­o de Salazar e Caetano. O que aconteceu entre nós durante esse período lembra um jogo de espelhos em que o observador e o observado, Europa e Portugal (o olhar da

Durante dois anos, a Europa inteira, privada de sonhos revolucion­ários desde a guerra de Espanha, pôs-se a sonhar, por Portugal interposto, os sonhos floridos que entre nós tínhamos cultivado

América é de outra espécie), trocavam entre si as mesmas utopias, as mesmas esperanças, os mesmos temores, sob ângulos diferentes, sem saber exatamente a que jogavam. Nós, portuguese­s, atores e espectador­es dessas inauditas perspetiva­s, não tínhamos nesse jogo um papel privilegia­do. Mas uma revolução é talvez isso: não se sabe para onde se vai, mas segue-se em frente, por fidelidade a sonhos mais poderosos do que cada um de nós.

De facto, de onde vinha a nossa revolução? E para onde ia? Nos começos dos anos 70 a nossa situação representa para muita gente ora um anacronism­o histórico, ora um escândalo, ora as duas coisas ao mesmo tempo, tanto no plano interno como no externo. Para um certo número de portuguese­s, ávidos de liberdade e democracia, um enigma e um pesadelo de que não conseguiam sequer imaginar o improvável fim que, num relâmpago, a Revolução de Abril materializ­ou.

NÃO PARECIA HAVER MOTIVOS para que aquilo que se tinha mantido durante meio século não se prolongass­e. Em 1970, Portugal é a mais velha ditadura europeia, solidament­e implantada apesar dos sobressalt­os que a faziam estremecer periodicam­ente. No plano exterior, era a única potência colonial que recusava ainda encarar e, menos ainda, admitir o que outros impérios muito mais poderosos - a Inglaterra e a França - já tinham admitido, quer dizer, a Descoloniz­ação.

Todavia, pouco tempo depois, a primeira e última nação colonizado­ra europeia vê-se reduzida ao seu espaço do século XV, e o mais orgânico dos regimes antidemocr­áticos do Ocidente vê-se convertido, após algumas peripécias, numa democracia. Nenhuma nação do Ocidente conheceu durante a década de 70-80 um abalo semelhante. Em qualquer outro país, tudo o que há 40 anos teve lugar entre nós após o momento eufórico da libertação - em particular a renúncia a um império colonial de meio milénio de duração - teria provocado, sem dúvida, não apenas um dilacerame­nto no mero plano político como um traumatism­o profundo.

Nada nos aconteceu de parecido. Ao cabo de 13 anos de Guerra Colonial, o nosso velho império revelou-se um encargo de que era imperativo libertarmo-nos. Esse foi o motivo próximo da Revolução de Abril. Mas a evolução da Europa, os verdadeiro­s interesses dos nossos atores económicos iam na mesma direção. De certo, o sentimento de fracasso, ao mesmo tempo histórico e ético, criado pela maneira como pusemos fim aos nossos sonhos imperiais, subitament­e anacrónico­s, e a forma como o processo de Descoloniz­ação se desenrolou - podia ter sido outro? - deixaram os seus vestígios na vida e na memória portuguesa­s posteriore­s ao 25 de Abril.

MAS TUDO ISSO CONTOU POUCO diante da urgência - antes de mais para as mesmas Forças Armadas - de se libertar de uma guerra levada a cabo com má consciênci­a (como a viveram e evocaram alguns dos mais decisivos atores e pensadores do 25 de Abril, entre eles Melo Antunes), e de instaurar e restaurar as liberdades cívicas, institucio­nalizando uma Democracia segundo o modelo ocidental. Para que uma vez liberto do antigo fardo glorioso, Portugal pudesse desempenha­r na Europa, então em construção, um papel capaz de compensar a sua nova realidade de pequeno país, privado daí em diante da sua dimensão imperial.

O regresso ao antigo lar lusitano foi-nos imposto pela força das coisas; a entrada na Europa, por consideraç­ões ao mesmo tempo políticas e económicas, cuja imperiosa necessidad­e ninguém sentiu e exprimiu com mais convicção do que o então líder do Partido Socialista, Mário Soares, que como Presidente cumprirá esse (até há pouco) sonho capital do 25 de Abril. Era preciso amarrar um Portugal onde então forças e tendências pouco democrátic­as continuava­m vivas, a um conjunto de forte coerência democrátic­a. Em suma, embarcar, por assim dizer, na barca da Europa democrátic­a.

Qualquer que seja o juízo que façamos, quer sobre as peripécias de uma revolução que entrou cedo na mitologia da esquerda europeia, quer sobre a estabiliza­ção enquanto democracia parlamenta­r de tipo clássico, incluso sobre a nossa adesão e integração no processo da construção europeia, Portugal mudou de rosto. Ou antes, conheceu tais mudanças de ordem estrutural e material, devido ao facto mesmo

A grande questão, a que merece ainda ser colocada, hoje em dia, em tempo de crise, nacional e europeia, é esta: adquirimos, para além das aparências, esse rosto novo que a memorável Revolução nos teria dado?

desse começo de integração, que o menos que se pode dizer é que já não somos o que éramos há 40 anos. Depois de um momento de perplexida­de, em pouco tempo, operámos uma conversão do nosso projeto histórico de que se conhecem poucos antecedent­es. Fizemola “à portuguesa”, sem drama, habituados como estamos, desde há séculos, a fazer da necessidad­e, virtude.

A grande questão, a que merece ainda ser colocada, hoje em dia, em tempo de crise, nacional e europeia, é esta: adquirimos, para além das aparências, esse rosto novo que a memorável Revolução nos teria dado?

DURANTE SÉCULOS, SER PORTUGUÊS significav­a implicitam­ente sentir-se filho de um país colonizado­r e, por essa razão, dotado de uma espécie de identidade universal imaginária. Agora, que com excelentes motivos, não nos podemos prevalecer deste rosto imaginário, em que é que nos convertemo­s? Estamos na Europa, mas custa-nos, a nível simbólico, definir-nos como europeus. O “europeísmo” não acrescenta nada - por enquanto - àquilo que nos sentimos ser. Sobretudo, não substituiu a inscrição no espaço, ao mesmo tempo onírico e real, que nos fez sonhar durante 500 anos.

E isto leva, para terminar, ao único tipo de carência que, ao fim destes 40 anos de pós-revolução de Abril, se pode assimilar a uma certa desilusão que toca o coração mesmo da Revolução e da histórica Revolução. A democracia foi legitimada; os seus efeitos na vida política e quotidiana dos cidadãos são inegáveis, por mais que a crise atual a ensombre. Vivemos num país livre e só aqueles que não conheceram nunca o custo de ter passado largos anos - ou toda uma vida - numa não-democracia, podem considerar estas regalias como formais ou desprezíve­is. Todavia, de certo modo, a nossa democracia é ainda ao cabo de 40 anos uma espécie de regime sem nome.

Queremos dizer com isto que a Revolução - a de todos nós que ela restituiu ao gozo de uma cidadania adulta e, naturalmen­te, aqueles que historicam­ente foram os seus atores por a terem desejado e sonhado - não suscitou ainda um verdadeiro imaginário, como outrora o da Monarquia, o da primeira República e, mesmo, do Estado Novo.

Só o seu momento inaugural permanece vivo e recebeu na véspera da sua celebração, a primeira das suas evocações fictícias apta a converter, ou ser já, uma memória viva e realmente “memorável”. Esperamos que esse retrato mitificado desse momento, para nós sempre presente, nos abra a porta para esse imaginário ausente que até hoje nos faltava para enterrarmo­s dignamente o imaginário de séculos que a mesma Revolução, em nome de exigências agora universais, sepultou para sempre.

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Foto de Eduardo Gageiro Salgueiro Maia no momento decisivo da Revolução

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