Portugal 50 anos O que mudou? O que falta fazer?
A Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra decidiu contribuir para as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Organizámos um conjunto de sete tertúlias dedicadas, cada qual, a um tema relevante. Em cada uma delas tivemos dois convidados de gabarito e de gerações diferentes. Afinal, a celebração de uma data tão relevante deve ser um momento de balanço crítico daquilo que aconteceu e de identificação do que ficou por fazer para que se cumpram os três DDD do programa do M.F.A.: “Democratizar, Descolonizar e Desenvolver [1].
No final de tudo, propusemos aos participantes a publicação das gravações (só o belo texto de Cristina Roldão não pôde ser incluído). O efeito final é uma obra com um certo perfume de ‘debate oral’, o que a torna agradável de ler. Fui diretor científico da iniciativa, e aqui ensaio sintetizar o essencial das suas conclusões – e do referido livro (2).
O livro abre com uma evocação das “Dez grandes conquistas de Abril”: 1º - A universalidade e igualdade dos direitos e deveres de todos os cidadãos. 2º - A liberdade de expressão, de associação e de participação na vida pública. 3.º - O Serviço Nacional de Saúde. 4.º - Os avanços na Educação. 5.º - A reforma da Justiça. 6.º O acesso ao emprego e o direito ao trabalho e à greve. 7.º O salário mínimo nacional e o subsídio de desemprego. 8.º - O direito a férias, subsídio de Natal e licença de maternidade. 9.º - A redução do horário de trabalho. 10.º - O fim da guerra colonial. Grande parte destas conquistas foi consignada na Constituição da República Portuguesa de 1976, uma das mais avançadas do mundo.
DEMOGRAFIA E ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO. O contexto demográfico em Portugal exige uma especial atenção: nos últimos 50 anos, a população aumentou 21% e a esperança de vida cresceu de 67,7 (em 1973) para 80,7 (em 2020). Porém, isso deveu-se à queda da mortalidade infantil, pois a taxa de natalidade bruta desceu de 24,1 para 7,7, o que coloca Portugal na lista dos dez países mais envelhecidos do mundo. Nas vésperas do 25 de abril, os jovens eram 30% da população portuguesa, mas agora são menos de 13%! Já o número de pessoas com mais de 65 anos amentou de 9,8% para 23,7%... Isto desenha um quadro preocupante: a média de idade da população ativa vai crescendo; os idosos são cada vez mais velhos e os grupos profissionais também; a taxa de reposição da força do trabalho diminuiu; e o número de pessoas em idade de trabalhar face ao número de pessoas em idade de receber pensões passou de 5 a 6 na década de 1960 para pouco mais de 1 nas projeções para 2050.
Sem a imigração, o panorama seria ainda pior: em 2022, 17% dos bebés nascidos em Portugal já foram de mãe estrangeira. A imigração contribui também para a mão-de-obra ativa e para a sustentabilidade da Segurança Social. Ela é, pois, crucial. Precisamos é de saber definir critérios (p. ex., privilegiar uma imigração qualificada nas áreas técnico-económicas carenciadas) e de pensar melhor na integração.
Também é preciso zelar pela forma como nos distribuímos: temos 82,5% da população a viver no litoral. Este “desertar do país pelo próprio país” acentua as desigualdades e gera outros problemas: na União Europeia, os custos com o congestionamento das grandes cidades já representam 1% do PIB. Ora, a história mostra que não é preciso ter muitas urbes grandes, ou uma vasta frente de mar, para se ter uma nação desenvolvida (vide a Suíça ou a Áustria).
É igualmente preciso planear o futuro com antecedência (p. ex: a necessidade de médicos, ou de professores, ou de informáticos, daqui a 40 anos) e ordenar em vez de improvisar ao sabor das conjunturas. Olhemos para as boas experiências internacionais e tiremos daí conclusões!
CIDADANIA E DIREITOS INDIVIDUAIS. Houve grandes progressos neste domínio, mas é preciso ter presente que eles não ocorreram em todo o planeta. Os avanços registados na Europa e na América do Norte foram em boa parte conseguidos à custa da exploração de povos de outras regiões do mundo, em especial em África e na América Latina. A concessão de direitos a alguns pressupõe geralmente a exclusão do acesso de outros a essas regalias. E a História mostra como os desequilíbrios regionais foram grandes. Mas mesmo nas zonas onde houve mais avanços, ainda é preciso que estes se consolidem. A extinção do colonialismo, por exemplo, deve ser acompanhada pela eliminação das práticas racistas latentes que subsistem em muitas sociedades desenvolvidas, apesar da lei.
Além disso, convém ter a noção de que vivemos tempos difíceis, com o capitalismo a assumir uma feição neoliberal que configura uma ameaça a muitos direitos que tínhamos por irreversíveis. Daí que as lutas sindicais assumam hoje um caráter mais defensivo, de proteção da democracia e das liberdades alcançadas. Confrontado com a redução
Existe pouca habitação pública: c. 2%, enquanto em diversos países da U.E. esse indicador ultrapassa os 30%! A globalização financeira dos mercados e o alojamento local vieram colocar novos desafios. É preciso saber responder-lhes
das margens de lucro, o capitalismo (que visa a acumulação individual e infinita) mais depressa se alia ao fascismo do que à democracia.
Também as universidades precisam de estar atentas aos desafios em curso. Um deles é o da inteligência artificial, que se estima poder causar a eliminação de 14% dos postos de trabalho europeus no espaço de uma década.
SER JOVEM EM PORTUGAL. Dois aspetos merecem uma atenção privilegiada: o acesso ao primeiro emprego e a habitação. Quanto ao primeiro, é preciso saber o que se pretende quanto ao modelo de desenvolvimento económico. Queremos manter o perfil de especialização que temos, centrado em setores como o Turismo ou o Imobiliário, que pagam pouco e têm baixos índices de conhecimento intensivo? Não basta aumentar as qualificações escolares e as exportações, é preciso que isso seja combinado com o crescimento dos setores económicos mais exigentes em conhecimento e com uma estratégia regulatória eficaz.
Também podemos apostar mais em setores estratégicos, como o ambiente. Há um caminho a percorrer num país que, em 1973, tinha uma distribuição da população pelos grandes setores de atividade quase equitativa (30 a 35% em cada), mas que tem hoje 70% da população ativa no setor terciário, apenas 25% na indústria e 2 a 3% na agricultura! As distorções do nosso modelo fazem com que 34% dos nossos jovens que está já a trabalhar receba o salário mínimo. O seu rendimento mensal (calibrado com o poder de compra) é apenas 33% do dos jovens suíços e 55% do da média europeia. Assim, a tentação é emigrar…
Outro problema grave é o da habitação. Temos um milhão de casas a mais, muitas delas residências secundárias e fogos vagos. E existe pouca habitação pública: c. 2%, enquanto em diversos países da U.E. esse indicador ultrapassa os 30%! A globalização financeira dos mercados e o alojamento local vieram colocar novos desafios. É preciso saber responder-lhes. Exige-se um “Porta 65 Jovem” mais alargado e versátil e um O livro, com o título acima, será apresentado a 23 de abril e reúne as intervenções numa série de tertúlias na Universidade de Coimbra, sobre a situação/evolução do país neste último meio século, em vários domínios muito relevantes. Neste texto, o diretor científico da iniciativa e da obra – prof. catedrático, de História, da Fac. de Letras daquela universidade, de que foi também pró-reitor e diretor da Biblioteca Geral – expõe e sintetiza o essencial das suas conclusões, além de dar a sua própria perspetiva*
LITERACIA, CULTURA E ARTES. Convém desde logo recordar que a educação não foi uma prioridade do Estado Novo, a quem não interessava a proliferação de pessoas cultas e informadas. A década de 1970 iniciou-se, por isso, com uma taxa de analfabetismo de ainda 26%! A escolaridade obrigatória, em 1974, estava então a chegar aos oito anos e o abandono escolar era elevado. Quase não existia ensino pré-escolar e não eram muitos os que completavam o Secundário. Numa brochura de 1953 (“O que é o plano da Educação Popular?”) fala-se do trabalho infantil para o associar à falta de interesse das famílias em mandar os filhos à escola, pois “o trabalho da criança é um valor económico”. A Lei de Bases do Sistema Educativo, de 1973, exaltava sobretudo o fomento das virtudes morais e cívicas, o amor da Pátria e a solidariedade comunitária e familiar.
O 25 de Abril mudou quase tudo. A taxa de analfabetismo situa-se hoje nos 3%, a escolaridade obrigatória é de 12 anos e generalizou-se o pré-escolar. Em 1978 estavam matriculados no Ensino Superior 81.582 alunos; em 2022 já eram 433.217. Temos hoje 1.800.000 licenciados, um número altíssimo à escala europeia.
Mas nem tudo são rosas. Em 2021, 61% dos portugueses não leram um único livro. E a arte, território por excelência de expressão da liberdade, continua a não merecer a atenção devida (veja-se o orçamento do Ministério da Cultura). Assim se sufocam a criatividade e a imaginação, estreitando-se as visões do mundo.
Artistas e agentes culturais autocensuram-se para conservar financiamentos e postos de trabalho; programa-se sobretudo aquilo que vende; e avalia-se o sucesso das iniciativas quase só pela audiência. Um inquérito da F.C.G. (2020) sobre os hábitos culturais dos portugueses mostra que os principais fatores para não visitar museus/monumentos e para não ir a espetáculos não têm que ver com o preço dos ingressos, mas sim com a falta de tempo ou de interesse… Dá que pensar, faltando um projeto integrador, inclusivo e com visão de futuro.
JORNALISMO, FAKE NEWS E REDES SOCIAIS. Não há democracia sem uma comunicação social forte e credível. Vivemos hoje numa época em que se carregam 500 horas de vídeo por minuto no YouTube, se partilham 66.000 fotos por minuto no Instagram e se publicam 1,7 milhões de posts no Facebook. Um tempo em que tudo parece fugaz e superficial. Os algoritmos manipuladores da Inteligência Artificial são mais um repto a enfrentar.
Neste cenário, importa saber identificar as principais “desordens informativas” e aprofundar os sistemas de “verificação de factos”, apetrechando as redações com meios humanos e técnicos para o fazer: if it’s fake, it’s not news, if it’s news, it’s not fake A valorização e a diversidade dos conteúdos informativos também são cruciais para contrariar o fenómeno de “saturação de notícias”, já comprovado nas gerações emergentes. Estes temas precisam de ser encarados com seriedade, tanto mais que, em Portugal, entre 2015 e 2022, segundo a Digital News Public Report, 79% das fontes de notícias dos portugueses foram já online, incluindo as redes sociais.
Pensar e intervir eficazmente nestas matérias é essencial para proteger a nossa democracia: o bom jornalismo é inseparável da busca constante da verdade; e é ele que, mais do que nunca, alimenta a democracia, enquanto o populismo medra com a especulação.
SAÚDE MENTAL E ENVELHECIMENTO. Eis dois temas que se interligam melhor do que pode parecer à primeira vista. Num tempo em que, em Portugal, podemos agora esperar viver 81 anos (em 1950, a esperança média de vida era de 58 anos), há um rosário de quesitos para que tal se cumpra com qualidade. A ciência mostra
Temos agora um Portugal muito melhor do que aquele que herdámos em 1974. Deixámos para trás um país pobre, amordaçado e isolado internacionalmente. E temos hoje um país livre, com uma democracia estabilizada e razoavelmente desenvolvido
Pensar e intervir eficazmente nestas matérias é essencial para proteger a nossa democracia: o bom jornalismo é inseparável da busca constante da verdade; e é ele que, mais do que nunca, alimenta a democracia, enquanto o populismo medra com a especulação
que um envelhecimento saudável depende de nós e que só 25% tem que ver com fatores genéticos.
Desde logo, importa abandonar o preconceito do “idadismo”: há senescência em todas as fases da vida e é possível aprender e contribuir socialmente após os 65 anos! Temos é de preparar o envelhecimento desde crianças, quer do ponto de vista físico, quer a nível mental, conforme o preconizado pela O.M.S..
Os idosos precisam de ter vida própria, de manter as suas redes de relações sociais, de continuar a fazer projetos e de sentir que são úteis. Em vez de isolamento, carecem de participação em atividades que lhes proporcionem prazer e emoções positivas.
A solidão, a pobreza, a iliteracia – em especial entre os mais velhos – são especialmente nefastas do ponto de vista da saúde mental (sem a qual não existe verdadeiramente saúde). Ora, isso exige cuidados integrados, estratégias inter-setoriais que articulem educação, trabalho, cultura, desporto e segurança social. Em Portugal já há bons exemplos neste sentido, importa consolidá-los. No 1.º relatório da O.N.U, sobre “Felicidade” (2013), Portugal figurava em 56.º lugar entre 137 países. Podemos fazer melhor, cuidando de forma mais atenta e articulada das questões da saúde mental e do envelhecimento.
UTOPIAS: A LIBERDADE. O TEMPO. Importa refletir sobre o conceito de “revolução” e revisitar o significado dos eventos ocorridos em Portugal em 1974. “Porque eu dormia e vieram-me dizer que tudo era possível já” (Maria Velho da Costa); “A divina surpresa” (Eduardo Lourenço); “O momento em que o anjo da alegria passou pelo mundo” (Lídia Jorge).
O que resta hoje, 50 anos volvidos, dessa vibração emocional?
Desde logo, a certeza de que não foi em vão. Temos agora um Portugal muito melhor do que aquele que herdámos em 1974. Deixámos para trás um país pobre, amordaçado e isolado internacionalmente. E temos hoje um país livre, com uma democracia estabilizada e razoavelmente desenvolvido. A revolta militar (seguida de revolução popular) de abril de 1974, feita quase sem derramamento de sangue e a expensas de um regime caduco, valeu a pena.
Resta também a consciência do muito que está por fazer, em especial no quesito “Desenvolver” do programa do M.F.A. Subsistem muitas desigualdades e assimetrias, existem novos desafios (sustentabilidade, renovação energética, transição digital), reclama-se um Portugal mais inclusivo e fraterno.
Importa também ter consciência de que a vivência acelerada do tempo imposta pela “hipermodernidade” desequilibra a nossa relação com o mundo. Do mesmo modo, a precariedade que se verifica em tantos domínios desenraíza-nos, impede-nos de criar hábitos, de sentir “um chão” e de podermos ser aí lugares uns para os outros. O mundo em que vivemos transporta, pois, consigo “dois sinais distópicos”: o de um “tempo sem fissuras” que agrava a nossa ansiedade; e o de “um mundo mais povoado mas cada vez mais desabitado”.
Lidar com esta realidade, resistir a ela, pressupõe recriar a ousadia que inspirou o 25 de Abril, preservar a utopia enquanto caminho para um lugar que não existe mas que funciona como horizonte a perseguir. Em síntese, implica reinventar uma “ecologia da existência”, em nome de um Portugal melhor.
*O livro, com o título em epígrafe (Ed. Manuscrito, 312 pp., 18,90 euros), tem coordenação de Isabel Campante, Beatriz França e Humberto Martins. O lançamento será no auditório da reitoria da Universidade de Coimbra, a 23 de abril, às 18 horas, apresentado por José Manuel Pureza, Maria do Rosário Belém e Manuel Portela.
[1] Eis os temas das tertúlias e os nomes dos respetivos animadores: 1. Demografia e ordenamento do território (Diogo Abreu e Eduardo Anselmo). 2. Cidadania e direitos individuais (Boaventura de Sousa Santos e Cristina Roldão). 3. Ser jovem em Portugal (Helena Roseta e Paulo Marques). 4. Literacia, cultura e artes (Abílio Hernandez e Maria Vlachou). 5. Jornalismo, fake news e redes sociais (Joaquim Furtado e Clara Almeida Santos). 6. Saúde mental e envelhecimento (António Leuschner e Margarida Pedroso de Lima). 7. Utopias: A liberdade. O tempo (Manuela Cruzeiro e André Barata).