Um sorriso de permeio
Já contei a notícia que me chegou do 25 de Abril numa manhã gelada duma cidade sueca. Seguiram-se dias de frenesi, troca de informações, trato de coisas burocráticas, despachos alfandegários, contactos, obtenção de documentos. Uma família a desinstalar.
Quando descemos no aeroporto, súbito o relance do sol nos olhos, o suave do céu, o abraço de amigos e conhecidos. Foi um relampejo, uma nota de alegria colorida que eu já havia esquecido, durante os últimos tempos. Estava já acostumado aos cinzentos, às indiferenças, às cortesias distantes, que, aliás, não me iam mal ao feitio. Entrei e fui levado no alvoroço e no ruído. Beijos e abraços estalados. Música no ambiente, em qualquer sítio.
Nos dias seguintes notei um comportamento inabitual nos meus conterrâneos, nos gestos, nos comportamentos, nas relações. Havia uma especial gentileza nos ares. Uma atmosfera diferente, que eu não conhecia em Portugal. As pessoas sorriam muito. Tratavamse com cortesia. Era como se existisse entre todos uma especial cumplicidade, entre a leda ousadia infantil e a leal camaradagem de armas.
Atribuí esta minha sensação à vacina anterior de Franças e Escandinanças, naquele contraste de índoles de outras terras, outras gentes. Mas confirmei, com surpresa e por várias vezes, que a impressão não era só minha. Naqueles dias, instalara-se entre nós uma espécie de universal bonomia, uma comunhão fraterna de destinos, fundada, porventura, na esperança de uma vida melhor, em paz, e sem o sufoco do fascismo quotidiano. O estado de graça, tantas vezes referido como metáfora, estava agora materializado nas ruas.
A revolução prosseguiu e precipitou-se, numa girândola de acontecimentos em turbamulta, gritaria, alucinações, alegria, atrevimentos, fitas, cenas e contracenas. E enormes e repentinas transformações sociais. Madrugada, manhã, tarde e noite confundiam-se num rodopio que não deixava tempo para refl etir, nem espaço para recuo.
Aquele clima fraterno, adequado a uma cidade mágica, de filme musical, nunca mais o senti. Foi um parêntese. Um momento especial, talvez único, de transição. Ficoume na memória, como um mistério embelezado. Os da minha geração (quer dizer: os que não estavam do lado de lá) tiveram o privilégio de viver, numa brusca aceleração da História, uma revolução pacífica, que transformou este país de lés-a-lés. Eu ia escrever “radicalmente” e ia enganar-me a mim próprio. Houve, na verdade, velhos atavismos que permaneceram. Mas no fundo do tumulto de recordações que me restam desse tempo, algumas desconexas, aqueles poucos dias de pacificação fraterna, disponível e solidária, ficaram, como um lastro benigno, a assinalar que um mundo melhor não é impossível.