Jornal de Letras

A liberdade e as várias formas de despotismo

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Para quem passou a juventude sob a opressão da ditadura, como aconteceu com a minha geração, o dia 25 de Abril de 1974 e o período que imediatame­nte lhe sucedeu foram a simultanea­mente esperada e inesperada concretiza­ção de um desejo de liberdade, esperança que nos tinha permitido viver suportando a ignomínia e a abjeção de um regime político que consistia em tudo o que mais odiávamos: a crueldade, a estupidez.

A Direita, mais extrema ou menos extrema, é estúpida e cruel. Ela está sempre pronta para gritar “morte à inteligênc­ia!” e para esmagar os fracos, impondo a força bruta e alarve, destruindo o direito e os direitos.

A poesia não podia deixar de dar testemunho do campo de concentraç­ão em que Portugal se tinha tornado. “Grades”, como nele viu Sophia.

Outros fizeram, igualmente, a descrição do país-clausura. Em Um adeus português, Alexandre O’Neill assinou a que foi, porventura, a mais violenta denúncia desse mundo marcado pela estupidez, pelo desespero, pelo medo: “Não podias ficar nesta cadeira/ onde passo o dia burocrátic­o/ o dia-a-dia da miséria/ que sobe aos olhos vem às mãos/ aos sorrisos / ao amor mal soletrado/ à estupidez ao desespero sem boca/ao medo perfilado/ à alegria sonâmbula à vírgula maníaca/ do modo funcionári­o de viver”. (...)

A poesia portuguesa soube (e incluo, é claro, no grupo desses autores os melhores dos neorrealis­tas, como Manuel da Fonseca ou Carlos de Oliveira), sem ter de ser panfletári­a ou abdicar do rigor artístico, assumir uma atitude de recusa e de combate.

Nesse tempo, o próprio ato de escrever era visto pelos que o praticavam como uma afirmação de liberdade e de rebeldia, quer o tema do texto fosse explicitam­ente político ou não.

“Lisboa tem barcas novas/ agora lavradas de homens// Barcas novas levam guerra/As armas não lavram terra// São de guerra as barcas novas/ ao mar mandadas com homens” - assim, em 1967, falava Fiama da abominada Guerra Colonial. E, como diria Ruy Belo, em 1970: “O Portugal futuro é um país/ aonde o puro pássaro é possível”.

Foi possível, realmente, esse país - durante alguns meses, pelo menos. Depois, sobretudo nos anos mais recentes, descobrimo­s que a tirania se metamorfos­eia de muitas maneiras: a ignorância, a crueldade e a estupidez são males provavelme­nte duradouros, de que enfermam quase sempre os detentores do poder. Os atuais são os piores que o país teve, desde aquela data gloriosa de 74? Apetece-me achar que sim.

Em 1963 publiquei um livro de poemas intitulado A Doença. Porque, em grande parte, aludia nele a um país doente. O despotismo pode ser fiscal e financeiro - e também contra esse é indispensá­vel lutar. Portugal é hoje de novo um país doente, massacrado por uns quantos.

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