Lembrar o momento perfeito
O 25 de Abril, assim mesmo grafado, como se fosse uma simples data que se apõe a uma assinatura, contém na sua sinalética primária o conceito de uma Revolução que desembocou numa Democracia, e só por isso se trata do nosso marco histórico mais assinalável, pois que nos deu a Liberdade. Ou melhor, nos deu a santa Liberdade, como costumam dizer aqueles que na sua juventude não a tiveram e conhecem o preço alto que foi necessário pagar para a alcançar e a manter.
Por isso mesmo essa data mítica, espécie de pictograma do nosso imaginário profundo, é sobretudo o indicativo de que, durante um dia, o acaso se encarregou de criar uma sucessão de coincidências que formam no seu conjunto um daqueles momentos da História que surpreendem pela luminosidade da sua eficácia e poder irradiante da sua imagem. Pode-se dizer que o 25 de Abril, antes de mais, é um dia. Um dia que começa numa madrugada em que cinco mil rapazes se dispõem a correr o risco de ficar sem futuro, para inverterem o velho destino e nos oferecerem a possibilidade de viver em Liberdade. É nesse dia que surgem os elementos fundadores de toda uma mitologia para onde se convoca a escuridão, a incerteza, o risco, o denodo, e por fim, já ao declinar da tarde, a libertação e a beleza. Esse dia é o momento intocável, aquele que por mais que façam e desfaçam, por mais que minimizem, sobrevive por si porque foi de facto excecional. Foi um momento perfeito. É esse momento inaugural e único, que durou um dia, que justifica, passados 40 anos, que o país se prepare para uma celebração conjunta praticamente unânime, como nunca se supôs.
Só que a unanimidade fica por aí, pelo símbolo e pelo festejo, pelo assentimento de obrigatoriedade a que a inclusão na Europa democrática ao longo do tempo foi impondo, tornando nós a aceitação desse marco como um dado consentido e adquirido. De resto, o que existe, e bem exposta, é uma fratura que atravessa a nossa sociedade de alto a baixo e atinge todos os patamares que vão do povo ao Estado. Sejamos francos. Estamos divididos, e talvez de forma insanável, entre aqueles que pensam que o 25 de Abril, tal como surgiu, na sua pureza inicial do primeiro dia, foi uma jornada imprescindível que ainda não se cumpriu e, apenas atrasada, ainda vai a caminho, e aqueles outros que sempre o consideraram inconveniente, desnecessário e um estorvo, aqueles que sempre advogaram que em vez da Revolução, o país teria chegado muito mais rápido ao progresso e ao desenvolvimento, se tivesse havido apenas uma Evolução, uma evolução na continuidade, para se usarem os termos exatos. Ora o momento que vivemos não é dos primeiros, como se sabe, pertence aos segundos.
Sejamos francos. O momento político que vivemos hoje, fortemente empurrado pelos ventos internacionais, coroa, 40 anos depois, todos aqueles que no dia 25 de Abril de 1974 ficaram atrás das portas à espera que a barafunda dos cravos passasse. Os peitos onde nenhum cravo vermelho ou branco alguma vez foi posto são hoje os senhores de Portugal e respiram em nome de todos nós. Há quem fale em vingança histórica. Não vou tão longe. Vingança invocaria uma deliberação esclarecida e dou o benefício da dúvida que assim não seja, ainda que às vezes pareça. Mas que o país que vai resultar do atual desenho fomenta os pilares do medo, da aceitação sem reserva, a fuga e o mutismo, tudo aquilo que o movimento dos cinco mil ao longo das estradas de Portugal prometeu quebrar naquela madrugada que resultou radiosa, isso é um facto.
Talvez seja por esse motivo que a comoção daqueles outros, os primeiros, os que acreditam que essa jornada foi necessária e imprescindível, se encontrem tão tristemente comovidos. Assim, sem mais, passo em revista os livros que falam sobre o que aconteceu há 40 anos e alisto sobretudo sequências de páginas que vão desde Cardoso Pires a Agustina Bessa-Luís, de Rui Zink ao mais recente João Ricardo Pedro, poetas como Manuel Alegre e dezenas de canções, e assim também me lembro da ópera de António Pinho Vargas, do documentário de Joana Pontes, os álbuns sucessivos de fotografias como o último de Alfredo Cunha e Adelino Gomes, ao que se deve acrescentar que, ainda mais consistente do que a celebração desse dia, ao longo do tempo, foi a denúncia que veio sendo feita por dezenas de escritores portugueses sobre a imperfeição da nossa democracia e os riscos que íamos correndo. Talvez não seja, porém, este o momento de carpir a nossa debilidade. É conhecido o ditado que diz que junto do carrasco não se fale da corda. Por favor, vamos ler as dezenas de livros que estão a ser publicados por estes dias. E se não houver dinheiro para comprar, ao menos passem pelas livrarias e, mesmo em pé, folheiem o que lá se expõe, e honrem-se por saber que a maior parte dos escritores portugueses nunca viraram as costas ao que de mais luminoso existe no nosso imaginário.