Três histórias reais e uma conclusão moral
“Termos nascido sob o regime de Salazar deve tornar-se numa aventura passageira cujas consequências devem ser de pouca duração.” Maria Gabriela Llansol in Numerosas Linhas. Livro de Horas III
1. MFA
Passava eu, e era já noite, numa rua deserta de Lisboa, quando de súbito apareceu um soldadinho, cheio da sua qualidade masculina. Seguiu no meu encalço, a murmurar as obscenidades do costume. E, como de costume, eu enfrentei-o. Expliquei-lhe que estava no meu pleno direito de caminhar em paz e que não via razão para que ele quisesse incomodar-me. Era também costume que parar, olhar nos olhos o assediador e calmamente debitar o meu discurso produzisse um efeito de surpresa, quase que um volte-face dos papéis. Era costume que o rapaz se fosse embora, confuso com o rumo do encontro.
O soldadinho, não. Cresceu e disse: “Quem manda agora somos nós, não sabes? Eu faço aquilo que me apetecer. Não há ninguém acima, nem polícias”.
Eu, que não sou medrosa destas coisas, recuei por manobra do instinto. A beleza dos tempos descarnava-se, revelando a doença no interior. O que mais me assustou foi que fiquei sem encontrar palavras para dizer. O próprio pensamento me faltava.
Moral da história: o poder velho depressa ocupa o poder novo.
2. MFA
Os terroristas de direita roubam armas. Suspeita-se que as levam de um lado para o outro em automóveis de aparência inofensiva. Os militares montam barricadas nos principais acessos a Lisboa. Um mini dirigido à ponte sobre o Tejo detém-se à vista dos soldados. Leva quatro juvenilíssimas professoras que sorriem e, diligentes, se preparam para sair. Uma delas ainda usa tranças louras.
Os nossos heróis de verde espreitam e mandam seguir. “Seguir porquê?”, diz uma delas, indignada. “As meninas não têm ar suspeito”. “Pois desses mesmos é que devem suspeitar. Façam favor de revistar o carro todo. E revistá-lo como deve ser”.
Elas viviam o momento de alto zelo que era o cuidado da revolução. Eles, mal dormidos, sob muitas horas de sede e de calor, obedeciam. Como se lhes coubesse obedecer. Inspecionavam, suspirando, a bagageira tão diminuta que os faria rir, não se encontrassem eles fatigados e vigiados pelas burguesinhas.
Moral da história: É mais fácil manter aceso o espírito revolucionário para quem está sentado do que para quem está muito tempo de pé.
3. PREC
Alentejo, uma aldeia pequenina. O silêncio de décadas quebrado. Reunir, debater: uma volúpia. O largo da aldeia já não era o mercado de escravos que fora até Abril. Mas para parlamento não servia. Pequeno o espaço para tanta gente e para tanta fala. E, à noite, sem luz. Olhando em volta, onde é que se encontrava ambas as coisas? Somente na igreja. Um lugar fresco, com grande som e bancos de madeira. O público do padre era escassíssimo. Pediu-lhe o povo algumas horas de aluguer. Disse o padre que não. Ao outro dia, arrombaram a porta à machadada. Tomaram seus assentos. Debateram tudo aquilo que havia a debater.
Prova de que o que em Lisboa acontecera fora, de facto, uma revolução: do padre não se ouviu uma palavra. Revolução, isto é: papéis trocados. Os de baixo para cima e vice-versa. Calado quem mandara calar até então.
O padrezinho contratou um carpinteiro para refazer a porta e a igreja tornou a ser fechada. Deu a missa, em tom algo belicoso. Dias depois, o povo reuniu. Com a porta deitada serenamente abaixo.
Chegaram, entretanto, os estudantes que ofereciam as férias à província e queriam ensinar os protocolos. Perguntaram ao povo por que não ocupara a igreja definitivamente.
“Para quê?”, perguntaram. “É assim: a gente quer entrar e arromba a porta. Ele vai e manda pôr a porta. A gente arromba. Ele vai e manda pôr. Damo-nos bem”.
Os estudantes não sabiam muito bem como classificar essa atitude.
Moral da história: enquanto a esquerda porfia e a direita reage, o madeireiro enriquece.