Jornal de Letras

São flores aos milhões entre ruínas. Façam completo silêncio

- FILIPA LEAL

“São flores aos milhões entre ruínas Meu peito feito campo de batalha” José Mário Branco

“Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ónibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios garanto que uma flor nasceu.” Carlos Drummond de Andrade

“E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você?” Carlos Drummond de Andrade

E agora, José Mário? E agora, Drummond? E agora, Filipa? E agora?

As flores estão no chão.

Os corpos estão no chão.

As flores estão cortadas, morrendo sobre os corpos cortados, morrendo.

“São flores aos milhões entre ruínas.” E agora, José Mário?

É que são flores a cobrir milhões entre ruínas. O ruído não pára, não passa, não melhora.

Os contabilis­tas do mundo arquivam

[facturas de armas e tanques. Vão jantar fora e alguns até conseguem

[dormir.

Mas não há água nos tanques de pedra da

[infância.

De infância nenhuma. Há armas. Que

[armas?

Ninguém nasce com licença. Com licença

[de uso e porte de arma. Ninguém parte de armas e bagagens para

[a cidade.

Para cidade nenhuma.

Os contabilis­tas do mundo (o mesmo,

[mesmo em frente) arquivam os restos das casas, os restos das contas

[que fazem ao que resta da vida.

Ninguém nasce. E agora?

Até as aranhas são ruidosas a fechar

[as suas teias. Deixam-nas cair como para-quedas sinistros sobre as famílias. Não há fuga para quem

[se ama em conjunto. Há esconderij­o para um, arroz para um,

[médico para um.

Só há fuga para quem se arma em conjunto.

Só há fuga para quem tem gasolina

[e capacetes e coletes à prova de flores, tantas flores

[aos gritos, tantas.

E agora, Drummond? “Façam completo silêncio.”

Mas não há silêncio neste cemitério.

Não há sequer cimento: só desespero; só pó. Este cemitério era a cidade, eram cidades.

E agora?

Com que flores celebramos a revolução? Com que gente?

Com que mão?

Eu hoje lembrei-me que já fui criança e preciso de explicaçõe­s.

Sou uma criança a precisar de explicaçõe­s.

Mas tu já não és criança, Filipa, tu tens obrigações: sociais, políticas.

Ah, as políticas, a política.

Eu preciso de explicaçõe­s como se fosse

[uma criança muito diferente da que fui.

Quero que me expliquem tudo já, como se eu

[fosse uma criança francesa. Como se eu fosse uma criança francesa

[no Maio de 68.

Como se eu já fosse uma criança portuguesa

[no 25 de Abril.

Como se eu tivesse sido uma criança

[preocupada.

Como se tivesse sido uma criança que

[pensasse na guerra, na revolução. Não pensei, e arrependo-me.

Quero voltar a ser criança para me

[preocupar, mas antes preciso que me expliquem tudo direitinho. Para me

[arrepender bem.

Eu apanhei flores vivas para a minha

[avó viva.

Eu brincava no jardim e só tinha medo

[de aranhas pequeninas.

E agora, Filipa?

Não sei nomes de flores e isso é indiferent­e. Mas inventei uma personagem que comia

[flores caras porque nunca passei fome. E isso é diferente. Perdoem-me.

Não saio daqui até que me expliquem

[o que devo fazer.

Alguém se levante, por favor, e me explique

[tudo como a criança que foi. Que as duas crianças

[conversem, que milhões de crianças conversem, que voltem a crescer flores entre ruínas,

[como na cidade de José Mário, que volte a nascer uma flor na rua,

[como na cidade de Drummond.

Eu não sei quem teria sido se tivesse nascido noutra rua, noutra cidade.

Sei que na cidade de José Mário, sei que na rua de Drummond, ainda há flores vivas, ainda há pessoas vivas.

Até quando, Drummond? Até quando, José Mário?

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