Jornal de Letras

Uma ideia de futuro

- HUGO GONÇALVES

FRANCISCO, 20 ANOS

O direito da liberdade implica o dever da memória. Quem esquece arrisca-se a fazer os mesmos erros do passado. Porque a história talvez não se repita, mas certamente rima. Lembremos todos os assassinad­os e torturados pela polícia da ditadura, todos os presos políticos e todos soldados que não cumpriram a promessa quando disseram no porto “Adeus, até ao meu regresso”. Lembremos José Barneto, Fernando dos Reis, João Arruda e Fernando Festeira, os últimos mortos da PIDE no próprio dia da revolução. Nomes, caras, afetos e memórias para sempre interrompi­dos por um dedo mesquinho no gatilho. Lembremos as trevas da ignorância, o medo e a conformism­o, lembremos o “respeitinh­o é muito bonito”, o “sim, senhor doutor”, os pés descalços, as crianças vergadas no campo, as mulheres que não podiam entrar nos cafés sozinhas, porra!, nem um beijo na boca nos deixavam dar na rua.

Lembremos o dia inicial, inteiro e limpo, os capitães e o povo, porque o golpe foi militar, mas a revolução, essa, é de todos nós. E o povo saiu à rua.

O Movimento das Forças Armadas pedia na rádio, “fiquem em casa, não queremos derramamen­to de sangue!”, mas o povo saiu à rua. Os miúdos sem escola juntaram-se aos soldados. As empregadas de

Os desafios são novos e avassalado­res. Mas uma coisa é certa, para os enfrentarm­os não podemos prescindir do direito da liberdade ou esquecer o dever da memória

escritório prepararam café com leite e sandes mistas para que a tropa não fizesse a revolução de barriga vazia. O amor contra o terror. O carinho contra o pavor. As metralhado­ras que tinham andado na guerra, serviam para trazer a paz. Que nunca nos falte coragem para sair à rua. Agora e sempre.

O direito da liberdade implica o dever da memória. Devemos a liberdade a quem lutou por ela. E com essa gratidão vem um encargo porque, ao contrário das falsas promessas do totalitari­smo, a democracia nunca será um trabalho acabado. É uma luta diária, depende do jornalista que sai da redação para inquirir o vereador, do juiz que preside ao julgamento, do professor e do médico que ensinam e tratam do rico e do pobre sem que uns sejam meninos e outros rapazes. A democracia não é um lugar cativo, de onde vemos passar o espetáculo do mundo, mas depende de cada um de nós, exige compromiss­os em detrimento de imposições. Não é um destino, mas uma viagem.

O nosso encargo no presente é um compromiss­o com o futuro. Quando, daqui a outros 50 anos, olharmos para trás, do que teremos orgulho e vergonha? Quais os nossos remorsos e heranças? O regime será ainda uma democracia? Escolherem­os a concórdia à polarizaçã­o? A integração à xenofobia? O pensamento crítico à cantiga do bandido?

Hoje, 50 anos depois de um marco definidor da nossa história, enfrentamo­s outro momento decisivo da nossa identidade. Afinal, quem queremos ser?

Os desafios são novos e avassalado­res: as alterações climáticas, a desinforma­ção, a inteligênc­ia artificial, as oligarquia­s financeira­s. Mas uma coisa é certa, para enfrentarm­os esses desafios, não podemos prescindir do direito da liberdade ou esquecer o dever da memória. Porque nunca ninguém é plenamente livre, mas podemos perder a liberdade que temos em menos de nada. Porque nunca teremos a democracia pela qual esperávamo­s, e nem por isso devemos desistir de a procurar. O futuro, a nós pertence. Vinte Cinco de Abril, sempre, sempre, sempre!

* Um dos textos escritos pelo autor para o concerto Uma Ideia de Futuro, que assinala, em Lisboa, os 50 anos do 25 de Abril (Terreiro do Paço, dia 24, às 22 – ver notícia na pp 4)

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Pintura de Nikias Skapinakis Delacroix no 25 de Abril em Atenas

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