Biografia em Abril
Não conheci o 25 de Abril das fotografias de Alfredo Cunha, mas os meus sentidos reconhecem certas atmosferas dos anos 80 do século passado captadas por Daniel Blaufuks. Da revolução, começam por apresentar-me a alegria expectante nas ruas, o peso amorfo dos tanques, meninos-soldados com espingardas-cravo, microfones metediços para documentar a notícia. Toda uma vontade de testemunhar em primeira mão: acotovelam-se fardas e roupa traçada, abespinha-se em fúria de viver a fraca dentição dos portugueses. Estou sentado à beira dos anos 90 e da minha carteira ouço um rol de professores pardos a explicar tudo. No instante, encantam-me essas vozes cheias de um sonho de anteontem, parecem afastar-me do aborrecimento momentâneo de estar sentado à beira dos anos 90 de lápis rombo na mão, escrevinhando a letra do tédio no tampo da carteira sem que me deixem fazer nada a respeito da revolução. Eu quero fazer alguma coisa a respeito da revolução.
Na minha vida, digo então de mim para mim, a revolução não parece terminada. Mas o manual da disciplina, autorizado pela capa forrada pelas mãos conjuntas dos pais, apresenta a revolução numa estranha disposição gráfica e promete todo um tempo para celebrar. Desde que me lembro que é tempo de celebrar. Nunca foi tempo de tramar, esconjurar, exorcizar, maquinar. Em festa, levanto-me e faço minha uma vitória que me venceu no tempo.
Esqueceram-se de mim no vasto e reluzente supermercado dos anos 80. Rápida, a desolação desperta o sonho de si mesmo. Sentado a outras mesas penduradas na corda cada vez mais roída dos anos, vou perguntando aos pais e estes respondem, sempre cumpridores, pedagogos, observantes da voz vermelha que lhes impôs um lugar cativo na história. Quem dera ter sido eu a deixar o meu golpe a canivete nessa árvore mansa. A revolução de Abril.
Hoje, passados todos estes anos, trago o coração na manga, perco finalmente a timidez e bato à porta do 25 de Abril dos manuais: responde voz grossa e enxofrada, diz que está fechado para manutenção
Um parente afastado, fechado numa tristeza sem nome e ignorado por todos, inicia-me nos primeiros cantores: Zeca Afonso planando na memória de uma planície, Chico Buarque perdido no outro lado do Atlântico, José Mário Branco de guarda montada à viola trigueira. Cresço num corpo desentendido de revoluções, um corpo que escuta apenas uma linguagem aflita de sangue, nervos e desejo sem fito, enquanto a família mais próxima vai renovando a ditadura diária do seu drama psicanalítico. De vez em quando, os meus passos conduzem-me aos lugares das conhecidas legendas, aos rostos que não conheci no Largo do Carmo. As décadas seguintes acenam-me com prospetos anunciando uma varanda voltada para uma nova revolução, dizem que a anterior envelheceu mal. Contam-me desde pequeno que antigamente as pessoas andavam caladas e eu calado ando pela minha biografia à procura de voz que se ouça.
Entretanto espreito o arquivo fílmico de uma felicidade indecente à boleia de elétricos que formigam amarelecidos ao sol de 74: por mais que tente, não consigo encaixar-me no fotograma do repetido abraço, ou entre os dentes muito brancos e lavados de um Cesariny desdentado. Hoje, passados todos estes anos, trago o coração na manga, perco finalmente a timidez e bato à porta do 25 de Abril dos manuais: responde voz grossa e enxofrada, diz que está fechado para manutenção.