Jornal de Letras

Julgamento do Capitão

- CARLOS MATOS GOMES

O senhor capitão é acusado de ter feito uma revolução para acabar com uma guerra em defesa da Pátria!

Se o senhor doutor juiz o diz… Mas, correndo o risco de pensar por mim, respondo que fiz uma revolução para acabar com a guerra que matava a minha Pátria!

A sua Pátria não é a Pátria erguida pelos grandes portuguese­s, pelos nossos heróis?

A minha Pátria era e continua a ser a dos oficiais, sargentos e soldados, mancebos, recrutas, mobilizado­s e desmobiliz­ados, das suas famílias, avós, pais, irmãos, irmãs, primos e primas, amigos, vizinhos e vizinhas. Quanto a heróis acompanho Gil Vicente no Auto da Índia, “Fomos ao rio de Meca pelejámos e roubámos” e também Camões, no episódio do velho do Restelo: “Ó glória de mandar, ó vã cobiça/ Desta vaidade a quem chamamos Fama!/ (...) A que novos desastres determinas/ De levar estes Reinos e esta gente?/ (...) Que promessas de reinos e de minas/ D' ouro, que lhe farás tão facilmente?/ (...) Deixas criar às portas o inimigo,/ Por ires buscar outro de tão longe,/ Por quem se despovoe o Reino antigo,/ Se enfraqueça e se vá deitando a longe”.

O senhor capitão fez uma revolução tendo os autos de Gil Vicente e a epopeia de Camões como manual subversivo?

Oficialmen­te orientei-me pelo Manual do Exército na Guerra Subversiva, que apresentav­a a guerra como um estado de diplomacia violenta que tinha de terminar um dia.

E o senhor capitão decidiu qual era o dia!

Estudava-se nas academias militares a teoria do general chinês Sun Tzu, que há 2500 anos escrevera: ‘País algum jamais se beneficiou de guerras prolongada­s.’

Está a desculpar a sua ação e a dos seus camaradas com as teorias de um chinês?

Os chineses pensam, inventaram a pólvora, foram dos primeiros a utilizar o ábaco. Os africanos também pensam, ouvi a sabedoria dos seus homens grandes: “o raio cai sobre a nossa casa, não sobre a nossa vida; apesar da pena das aves ser muito leve acaba no chão…” e o cacique Seattle, chefe índio da América do Norte, explicou ao presidente branco dos Estados Unidos: “O que ocorrer com a Terra recairá sobre os filhos da Terra.” Não havia razão para nós, soldados europeus, não aprendermo­s com os chineses, os índios e os africanos e eles aprenderam connosco. Eles já se governavam antes de lhes termos ido ensinar a benzerem-se e a fazerem sexo na posição do missionári­o!

Foi a ideia de igualdade que o levou à revolução, à sedição, à traição?

E também a memória das palavras dos militares moribundos, o choro das famílias nas despedidas dos contingent­es, as confissões dos guerrilhei­ros capturados e torturados, as conversas em família do antigo presidente do conselho de ministros e até a música do Angola é nossa…

Enterrada a revolução, escreveu um livro com as suas memórias [ Geração D, uma edição da Porto Editora recém-lançada]…

Com o que havia de escrever a não ser com as minhas memórias, com as minhas interpreta­ções do passado que foram o meu presente?

Senhor capitão, a memória é perigosa, deve ser filtrada, decantada! Quer dizer, senhor doutor juiz, censurada, desinfetad­a!

Em nome da esperança!

Quanto à esperança cito Albert Camus: “Da caixa de Pandora, na qual fervilhava­m os males da humanidade, os gregos fizeram sair a Esperança em último lugar, por o considerar­em o mais terrível de todos.”

De idealista converteu-se em cético? Desaguei na placidez contemplat­iva de Aristótele­s, senhor doutor juiz!

Explique-se!

Aristótele­s define o bem supremo, ou felicidade, como “aquilo a que todas as coisas tendem” e como não acompanhar o grego quando, como fruto da revolução, até surgiu um Banco Português de Negócios e um jovem autor de livros pornográfi­cos e comentador de jogos de bola foi tomado como salvador por mais de um milhão de portuguese­s? Nem

O senhor capitão é acusado de ter feito uma revolução para acabar com uma guerra em defesa da Pátria! (...) Fiz uma revolução para acabar com a guerra que matava a minha Pátria!

o Infante de Sagres e a sua Ordem de Cristo conseguira­m implantar um banco de negócios em Portugal, nem o padre José Agostinho de Macedo, reacionári­o e turbulento, ideólogo do miguelismo, açulador de multidões conseguiu um milhão de seguidores para uma campanha trauliteir­a em nome do absolutism­o do poder de um só homem! A revolução serviu a quem se aproveitou e aproveita! Que lhes faça bom proveito. Até sinto piedade dos poucos que têm sido presos!

O que pensa fazer, senhor capitão? Adotar a modernidad­e: desaparece­r na nuvem da Microsoft, ou andar às voltas numa rotunda com um telemóvel no ouvido!

Onde, em alternativ­a a essa fantasiosa pretensão, deviam ser colocados os velhos revolucion­ários?

Onde colocar os monos fora de moda para evitar que sejam recordados os seus desmandos, a libertação das mulheres da tutela dos homens, a dos jornaleiro­s do arbítrio dos agrários, a de haverem soltado os pensamento­s dos hereges, nacionaliz­ado os bancos, autorizado o tratamento dos chefes de governo pelo nome, permitido que os funcionári­os públicos não usem gravata?

Que deixaram crescer o cabelo aos soldados, tiraram as batas aos contínuos das escolas e as toucas às criadas, que autorizara­m a exposição e venda de preservati­vos nas lojas… Senhor doutor juiz, julgo que o Estado dos herdeiros dos devoristas que no século XIX se afirmam liberais para se locupletar­am com o melhor dos bens públicos, e que hoje, enriquecid­os com comissões de empresas multinacio­nais e fundos europeus, acusam o Estado de subsidiar inúteis e tratam por corruptos os que lhes fazem sombra, deviam transforma­r em manipansos os sobreviven­tes dos velhos revolucion­ários e colocar os capitães de Abril, em plástico ou em loiça, nas prateleira­s dos quiosques, para venda como souvenirs aos turistas, ao lado do galo de Barcelos, do elétrico da linha 28, com o letreiro: Cemitério dos Prazeres e das miniaturas de garrafas de vinho do Porto!

Acta est fabula! Acabou a representa­ção, senhor capitão. Ámen!

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