Julgamento do Capitão
O senhor capitão é acusado de ter feito uma revolução para acabar com uma guerra em defesa da Pátria!
Se o senhor doutor juiz o diz… Mas, correndo o risco de pensar por mim, respondo que fiz uma revolução para acabar com a guerra que matava a minha Pátria!
A sua Pátria não é a Pátria erguida pelos grandes portugueses, pelos nossos heróis?
A minha Pátria era e continua a ser a dos oficiais, sargentos e soldados, mancebos, recrutas, mobilizados e desmobilizados, das suas famílias, avós, pais, irmãos, irmãs, primos e primas, amigos, vizinhos e vizinhas. Quanto a heróis acompanho Gil Vicente no Auto da Índia, “Fomos ao rio de Meca pelejámos e roubámos” e também Camões, no episódio do velho do Restelo: “Ó glória de mandar, ó vã cobiça/ Desta vaidade a quem chamamos Fama!/ (...) A que novos desastres determinas/ De levar estes Reinos e esta gente?/ (...) Que promessas de reinos e de minas/ D' ouro, que lhe farás tão facilmente?/ (...) Deixas criar às portas o inimigo,/ Por ires buscar outro de tão longe,/ Por quem se despovoe o Reino antigo,/ Se enfraqueça e se vá deitando a longe”.
O senhor capitão fez uma revolução tendo os autos de Gil Vicente e a epopeia de Camões como manual subversivo?
Oficialmente orientei-me pelo Manual do Exército na Guerra Subversiva, que apresentava a guerra como um estado de diplomacia violenta que tinha de terminar um dia.
E o senhor capitão decidiu qual era o dia!
Estudava-se nas academias militares a teoria do general chinês Sun Tzu, que há 2500 anos escrevera: ‘País algum jamais se beneficiou de guerras prolongadas.’
Está a desculpar a sua ação e a dos seus camaradas com as teorias de um chinês?
Os chineses pensam, inventaram a pólvora, foram dos primeiros a utilizar o ábaco. Os africanos também pensam, ouvi a sabedoria dos seus homens grandes: “o raio cai sobre a nossa casa, não sobre a nossa vida; apesar da pena das aves ser muito leve acaba no chão…” e o cacique Seattle, chefe índio da América do Norte, explicou ao presidente branco dos Estados Unidos: “O que ocorrer com a Terra recairá sobre os filhos da Terra.” Não havia razão para nós, soldados europeus, não aprendermos com os chineses, os índios e os africanos e eles aprenderam connosco. Eles já se governavam antes de lhes termos ido ensinar a benzerem-se e a fazerem sexo na posição do missionário!
Foi a ideia de igualdade que o levou à revolução, à sedição, à traição?
E também a memória das palavras dos militares moribundos, o choro das famílias nas despedidas dos contingentes, as confissões dos guerrilheiros capturados e torturados, as conversas em família do antigo presidente do conselho de ministros e até a música do Angola é nossa…
Enterrada a revolução, escreveu um livro com as suas memórias [ Geração D, uma edição da Porto Editora recém-lançada]…
Com o que havia de escrever a não ser com as minhas memórias, com as minhas interpretações do passado que foram o meu presente?
Senhor capitão, a memória é perigosa, deve ser filtrada, decantada! Quer dizer, senhor doutor juiz, censurada, desinfetada!
Em nome da esperança!
Quanto à esperança cito Albert Camus: “Da caixa de Pandora, na qual fervilhavam os males da humanidade, os gregos fizeram sair a Esperança em último lugar, por o considerarem o mais terrível de todos.”
De idealista converteu-se em cético? Desaguei na placidez contemplativa de Aristóteles, senhor doutor juiz!
Explique-se!
Aristóteles define o bem supremo, ou felicidade, como “aquilo a que todas as coisas tendem” e como não acompanhar o grego quando, como fruto da revolução, até surgiu um Banco Português de Negócios e um jovem autor de livros pornográficos e comentador de jogos de bola foi tomado como salvador por mais de um milhão de portugueses? Nem
O senhor capitão é acusado de ter feito uma revolução para acabar com uma guerra em defesa da Pátria! (...) Fiz uma revolução para acabar com a guerra que matava a minha Pátria!
o Infante de Sagres e a sua Ordem de Cristo conseguiram implantar um banco de negócios em Portugal, nem o padre José Agostinho de Macedo, reacionário e turbulento, ideólogo do miguelismo, açulador de multidões conseguiu um milhão de seguidores para uma campanha trauliteira em nome do absolutismo do poder de um só homem! A revolução serviu a quem se aproveitou e aproveita! Que lhes faça bom proveito. Até sinto piedade dos poucos que têm sido presos!
O que pensa fazer, senhor capitão? Adotar a modernidade: desaparecer na nuvem da Microsoft, ou andar às voltas numa rotunda com um telemóvel no ouvido!
Onde, em alternativa a essa fantasiosa pretensão, deviam ser colocados os velhos revolucionários?
Onde colocar os monos fora de moda para evitar que sejam recordados os seus desmandos, a libertação das mulheres da tutela dos homens, a dos jornaleiros do arbítrio dos agrários, a de haverem soltado os pensamentos dos hereges, nacionalizado os bancos, autorizado o tratamento dos chefes de governo pelo nome, permitido que os funcionários públicos não usem gravata?
Que deixaram crescer o cabelo aos soldados, tiraram as batas aos contínuos das escolas e as toucas às criadas, que autorizaram a exposição e venda de preservativos nas lojas… Senhor doutor juiz, julgo que o Estado dos herdeiros dos devoristas que no século XIX se afirmam liberais para se locupletaram com o melhor dos bens públicos, e que hoje, enriquecidos com comissões de empresas multinacionais e fundos europeus, acusam o Estado de subsidiar inúteis e tratam por corruptos os que lhes fazem sombra, deviam transformar em manipansos os sobreviventes dos velhos revolucionários e colocar os capitães de Abril, em plástico ou em loiça, nas prateleiras dos quiosques, para venda como souvenirs aos turistas, ao lado do galo de Barcelos, do elétrico da linha 28, com o letreiro: Cemitério dos Prazeres e das miniaturas de garrafas de vinho do Porto!
Acta est fabula! Acabou a representação, senhor capitão. Ámen!