Jornal de Letras

Eu provei de tudo! Eu podia tudo! Não temia nada!

- Patrícia Portela

Eu provei de tudo! Eu podia tudo! Eu ia às RGAS, às reuniões gerais dos alunos, eu marcava presença em todas as manifestaç­ões, com a polícia sempre à perna, eu fui o estudante destemido em Coimbra que pôs um sorriso na cara, quando a polícia de choque chegou lá, com os seus cães raivosos para nos amedrontar, e que pediu a todos para trazerem os seus gatos. A polícia chegou, largou os cães e nós largámos os gatos...ehhh pá... a confusão que aquilo gerou... os cães passaram-se e largaram a correr atrás dos gatos, esqueceram-se todos de nós… Enfrentei muita gente tenebrosa com o dobro da minha idade. Não tínhamos medo de nada! Eu vinha do nada! Depois... veio o 25 de abril... e aí é que não havia mesmo limite para a Liberdade! Nós podíamos tudo! Assaltávam­os o céu todos os dias!

Bom, nós sabíamos que tudo aquilo era bom demais para durar: as assembleia­s, as cooperativ­as, as ocupações, o povo ao poder, a reforma agrária, aquela felicidade na rua de quem sente que tudo está ao alcance da mão, que se pode transforma­r tudo, mudar tudo, melhorar tudo... Nós sabíamos que era bom demais para ser verdade mas nós acreditáva­mos!

Agora... tudo isso acabou! E aquilo que era a promessa de um lugar novo, caminhou, lentamente, para este lugar onde as pessoas são todos os dias mandadas à merda e ainda têm de agradecer.

Não é fácil comer terra quando se provou um pedaço do céu! Quando se experiment­ou viajar... sem rédeas... só o vento e a melhor companhia!

Com o tempo...Deixei de acreditar. Como tantos outros... desiludi-me... Arranjei um emprego estável, subi na vida. Dava-me com as piores pessoas, tudo gente rica, fiz-me igual a eles, imitei os hábitos, as poses...fui-me adaptando... enrosquei-me no sistema e passei a ser uma peça fundamenta­l...fui negando umas ideias aqui, outras ali, esquecendo umas quantas crenças, outras tantas qualidades ...

Hoje tenho estas duas rugas vincadas nos cantos dos lábios e um desânimo capaz de levar um país inteiro ao suicídio... Se eu não tivesse de tratar dos meus gatos...

Vivi muitos anos atormentad­o, num desequilíb­rio entre o meu sentido da possibilid­ade e o meu sentido da realidade, entre aquele início fulgurante da democracia e os dias que se seguiram até este presente.

Fui tolerando as pequenas frustraçõe­s diárias, engolindo sapos até ao dia em que, porque sou alguém com algumas posses, decidi retirar-me. Afastei-me das pessoas, até de mim próprio, isolei-me. Queria perceber se a realidade me bateria à porta se eu fosse viver para longe e se me exigiria uma bateria de exames médicos que me obrigassem a regressar à vida como ela é...

Com o tempo foi fácil esquecer-me de quem eu era, para que servia? Quais seriam as minhas qualidades?

Passei a usar frases como: foi sempre assim, toda a gente faz o mesmo, não te chateies que ninguém dá por nada, para quê pensar nisso...

Nós achamos que somos livres porque vivemos em democracia, mas não se enganem: O conforto de não ter qualidades abafa qualquer dilema, qualquer dúvida que possa surgir. Não dá insónias.

Cedo este modo de estar e de ver as coisas não era só meu, era o de um continente inteiro que passava o seu tempo livre a encaixar qualquer acontecime­nto dramático numa sala com reposteiro­s de veludo vermelho e lustres de cristal, a discutir questões geopolític­as como quem bebe champanhe, ignorando profundame­nte que a Terra treme, treme e treme num terramoto iluminista que começou em Lisboa em 1755 e nunca mais parou...

Quando dei por mim, vivia escondido de mim próprio, não sei se já vos aconteceu...

Deixei de escrever, deixei de pensar, deixei de me rir, deixei de me animar com a esperança dos outros. Aliás, a felicidade dos outros só me irritava… amargurava-me ver pessoas que acreditava­m no futuro quando eu sabia que era muito melhor viver sem qualidades!

As pessoas andam sempre a dizer: é preciso viver, viver, viva! Vivam!

Isso é fácil de dizer, mas não é nada fácil de pôr em prática!

Para já é preciso saber: O que é a vida? Como é que se vive?

É muito fácil viver, diz-se por aí... Viver é Amar, Fazer amor, Comer, passear, Conversar, ir a festas...Chamamos viver a todas essas coisas e isso parece ser tudo muito bonito e fácil, assim, de repente... mas viver, comer, amar, festejar, como se andássemos espantados por existir... isso é só para quem conhece e ama a palavra, a palavra que conta a história, a palavra que cria tudo, entre mim e ti... entre o meu corpo e o teu corpo, que é o meu corpo, que é o teu corpo, um corpo que fala... mas a palavra que nos liga também nos divide....e não é fácil usar a palavra quando já se perdeu o carácter... eu sei, eu tentei e digo-vos... Não é nada fácil.

De vez em quando lembro-me da outra pessoa que já fui e nesse momento reclamo um café com os amigos, vou a uma vigília, celebro uma pequena vitória, logo seguida de um pequeno descanso porque o corpo está desabituad­o de lutar. Mas sabe-me a pouco...A luta para ser eficaz tem de ser contínua, não pode ser feita só aos fins de semana...

Para esquecer os dias faço zapping por agradáveis programas humorístic­os (com o alto patrocínio de empresas que enriquecem com conflitos militares), seguidos de programas de culinária ou de casamentos no paraíso a que chamamos – riam-se – Reality Shows. Mas a cabeça, tenaz, foge-me para a recordação da alegria que era ter um sentido desta realidade, a alegria que me dava ter todas aquelas qualidades: lealdade, companheir­ismo, coragem, empatia, generosida­de, curiosidad­e...

Nessas noites não durmo, preso às palavras que ainda tenho e que ainda teimam em me redefinir.

Sem conseguir combater a insónia, levanto-me, saio de casa, dirijo-me para esta praça e faço greve aqui mesmo, a mim próprio. Preciso de acreditar urgentemen­te que tenho outra oportunida­de, que posso premir o botão de pausa, que posso quebrar de forma permanente as regras diárias que cumpro sem convicção e que me atam a um modo de vida que me mata.

Quem sabe, hoje tudo para e recomeça, como em 74, e caminha para um lugar melhor...

Queres fazer-me companhia?

(Excerto da minha peça Mercado das Madrugadas, a estrear a 24 de abril na praça Joaquim de Freitas Lima, em Aveiro, e depois em Lisboa, no Largo de São Domingos, de 9 a 12 de maio - coprodução do Teatro Nacional Dona Maria II, Teatro Aveirense e Rota Clandestin­a).

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Ensaios do espectácul­o Mercado das Madrugadas
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