Romance português: 1974 – 1980 A autora de um cânone esgotado
Ocânone do romance português entre a década de 1970 e 2000 nasceu com o 25 de Abril de 1974. A partir de 2000, novos autores revolucionaram o horizonte do romance português, tendo o livro de Gonçalo M. Tavares como espécie de manifesto, Breves Notas sobre Literatura – Bloom, Dicionário Literário (2018).
Nos anos 70, confluíram um conjunto de romancistas que publicavam desde os anos 50 com um outro conjunto de autores que se estrearam entre 1979 e 1980. Na literatura, o 25 de Abril rompeu com a absolvição das “Três Marias” (Velho da Costa, Teresa Horta e Isabel Barreno) pelo tribunal do processo relativo ao livro Novas Cartas Portuguesas (1972), foi a descompressão de cerca de 50 anos de medo de escrever.
Logo surge um conjunto de romances totalmente impossíveis de serem publicados devido à censura política: Urbano Tavares Rodrigues com Viamorolência (1976) e As Pombas são Vermelhas (1977); José Rodrigues Miguéis com os dois volumes de Milagre Segundo Salomé (1975); Alexandre Pinheiro Torres com A Nau de Quixabá (1977) e Jorge de Sena com Sinais de Fogo (1977), um dos mais importantes romances do século.
Dos autores já então consagrados, Agustina BessaLuís tem uma metade de década de paraíso: A Crónica do Cruzado Osb (1976), cruzando a conquista de Lisboa aos mouros com episódios revolucionários do 25 de Abril de 1974, prossegue com o poderoso Fanny Owen (1979), que Manuel de Oliveira filmará, onde, sobre um Douro de famílias decadentes, surge um retrato espantoso de Camilo Castelo Branco (talvez o mais verdadeiro que já lemos, porque é um Camilo só instinto), e, já na década de 80, o lançamento de Os Meninos de Ouro. Não existisse A Sibila (1954) e Agustina teria firmado aqui o seu nome nas letras pátrias, mesmo tendo editado em 1979 a desastrosa biografia de Florbela Espanca, uma mulher “estouvada”, o contrário da sua personalidade, que ela tentou, mas não conseguiu entender.
Ainda na década de 70, duas escritoras então muito lidas e hoje um pouco esquecidas: Maria Ondina Braga (a reedição de A China fica ao lado, 1974, A Revolta das Palavras, 1975, A Personagem, 1978), um pouco longe do que serão talvez os seus melhores romances, Noturno em Macau (1984) e Angústia em Pequim (1991), e Olga Gonçalves, com Floresta de Bremerhaven (1975), Mandei-lhe uma Boca (1977) e Este Verão o Emigrantes Là-bas (1978). Maria Velho da Costa, após a publicação do extraordinário Maina Mendes (1969), publica o igualmente extraordinário Casas Pardas (1977).
João de Melo publica Memória de Ver Matar e Morrer (1977), iniciando uma peregrinação literária que o tornará um dos mais importantes escritores portugueses, cruzando o tema dos Açores (uma trilogia do outro mundo) com o tema da Guerra Colonial, guerra que ainda fará aparecer Walt (1978), de Fernando Assis Pacheco, explorada literariamente depois por António Lobo Antunes, Carlos Vale Ferraz, José Martins Garcia e Domingos Lobo. É uma vertente do romance português pós-25 de Abril que está a fenecer, dando lugar à guerra da sobrevivência das novas gerações na selva urbana.
PORÉM, NO QUE AO ROMANCE diz respeito, o grande autor que atravessa a década de 70, subvertendo todos os códigos literários (menos os surrealistas), é Nuno Bragança: A Noite e o Riso (1969), Direta (1977) e Square Tolstoi (1981 – existe uma edição conjunta na D. Quixote), introduzindo a desordem e a instabilidade literária numa casa tão bem ordenada desde a década de 50 (José Régio, Alves Redol, Ferreira de Castro, Vergílio Ferreira, Abelaira, Fernanda Botelho, Maria Judith de Carvalho, Isabel da Nóbrega e muitos etc.. mas não Ruben A. e Ana Hatherly): afinal era possível escrever “caoticamente”, contestando todas as regras dos manuais, como Nuno de Bragança o fazia.
Segundo Joana Emídio Marques, no Observador, “Nuno Bragança libertou a língua portuguesa, tornou-a uma festa pagã onde os substantivos e adjetivos se transformam em verbos, os calões das margens encontram o linguajar das famílias nobres, o vernáculo solta-se com a fúria que lhe compete. Os diálogos são ágeis, a caneta não lhe dava negas à memória, a oralidade encontra a escrita e não recua perante ela”. Com as “Três Marias”, que anunciam um mundo literário amplamente dominado pelo feminino, e os romances de Nuno Bragança, fez-se 25 de Abril de 1974 na literatura.
Porém, vão ser os anos entre 1979 e 1981 que irão marcar o novo cânone literário (que, atenção, durará apenas até 2000, ano simbólico, que regista o aparecimento de uma geração que só publicará no século presente: Patrícia Portela, Sandro William Junqueiro, Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto, Valério Romão, Alexandra Lucas Coelho, Ana Margarida Carvalho, Cláudia Lucas Chéu, António Carlos Cortez, Raquel Freire, Madalena de Castro Campos).
De facto, neste pequeníssimo período de 3-4 anos emergirão para a Literatura os autores que irão marcar a literatura portuguesa nos seguintes 25 anos: Lídia Jorge com O Dia dos Prodígios (1980), Hélia Correia com O Separar das Águas
(1981), Teolinda Gersão com o absolutamente inolvidável O Silêncio (1980), António Lobo Antunes com um autêntico tratado sobre a metáfora em quatro romances, Os Cus de Judas (1979), Memória de Elefante (1979), Conhecimento do Inferno (1980) e Explicação dos Pássaros (1981), Luísa Costa Gomes, Treze Contos de Sobressalto (1981), Mário Cláudio com Um Verão Assim (1974) e Máscaras de Sábado (1976), que não revelam o escritor gigante que irá ser, Rui Nunes com Sauromaquia (1974), que revela já o grande escritor que será, e Mário de Carvalho,
Na literatura, o 25 de Abril rompeu com a absolvição das “Três Marias” pelo tribunal do processo relativo ao livro Novas Cartas Portuguesas (1972), foi a descompressão de cerca de 50 anos de medo de escrever
com Contos da Sétima Esfera (1981), que também o revela como o nosso melhor contista a seguir ao 25 de Abril
Deixo para fim o nosso Nobel: em 1980, um dos melhores romances desses anos: Levantado do Chão (1980 – Prémio Cidade de Lisboa), o melhor romance que se escreveu sobre o Alentejo, e Memorial do Convento (1982), um dos melhores romances do mundo. No romance, como se constata, valeu a pena o 25 de Abril, dando início a um dos períodos de ouro deste género literário.
SEGUNDO UM REGISTO EXTRALITERÁRIO, cumpre dizer que, desde a década de 60, para os escritores ante-Revolução que, após ela, continuam a escrever, bem como para os novos escritores que ora, em 1974, se iniciam nesta arte o objetivo comum é tornar Portugal moderno (explícita intenção de Pessoa 60 anos antes; explícita intenção de José Régio 47 anos antes; ambas as intenções falhadas historicamente devido à emergência do Estado Novo, que ruralizou o país), participar da literatura europeia, ser tão europeu quanto a França, país então inspirador de Portugal.
Ser um país moderno significava em 1974:
1) Superar os três traumas históricos de Portugal: a)
Não ter realizado a revolução religiosa protestante do século XVI; b) Não ter feito a revolução científica do século XVII; 3) Não ter celebrado a revolução política democrática do século XVIII;
2) Exprimir-se em total liberdade, abolição total da censura, qualquer tipo de censura;
3) Ultrapassar a pobreza económica em que a população sobrevivia desde a segunda metade do século XVI;
4) Ultrapassar o analfabetismo e a ignorância em que a maioria da população vivia, isto é, em estado social de imbecilidade geral;
5) Findar e denunciar uma Guerra Colonial de 13 anos e permitir a independência das colónias;
6) Democratizar as instituições do Estado, ganhando assim prestígio internacional;
7) Finalmente, mudar o rumo do país, substituindo o tradicional privilégio atribuído ao Atlântico pelo privilégio atribuído à Europa.
De um modo ou de outro (a favor ou contra), toda a literatura portuguesa entre 1974 e 2000 se enquadra neste plano social, que, mais do que político, é verdadeiramente civilizacional, já que intenta operar o resgate de três a quatro séculos de história de Portugal.