A Poesia está na rua
O ano de 1974 é, por razões óbvias, fundamental também na poesia e não apenas nas mudanças políticas e sociais que a Revolução de Abril operou noutros planos da nossa vida colectiva. Há datas simbólicas que mapeiam a historicidade contemporânea, mas que, por motivos estritamente literários, só literariamente costumam ser consideradas.
É assim com a geração do Orpheu (1915), com a da Presença (19271940) e a dos Cadernos de Poesia (1940), com a do Novo Cancioneiro (1942), e com outras gerações que, em torno de revistas, funcionaram como sismógrafos da evolução cultural considerada no seu todo. Lembremos Árvore (1951-53) e Távola Redonda (1950-54) e, tendo em conta a lógica “grupal” de certos acontecimentos poéticos relevantes no período pós-45, as plaquettes Poesia 61, os Poemas Livres (3 números, 1962-63 e 68), a Poesia Experimental (1965) e, porventura, já em 76, a geração de “Cartuxo”.
O ano de 74 altera por completo o contexto em que se tinha definido uma certa concepção de escrita. Por se ter debatido com a censura durante 48 longos anos, a literatura foi-se reinventando em função da urgência de ter de fintar o lápis azul. Alusiva e metafórica, indirecta e alegórica, feita de sugestões e de implícitos, mesmo se muitos entendiam quem era o “dinossauro excelentíssimo” (Cardoso Pires), ou o “abutre” que alisava as suas penas (Sophia); mesmo se para muitos era clara a injunção dum verso como “estou vivo e escrevo sol” (Ramos Rosa), mesmo se o poeta, escrevendo pela noite fora, anunciava “Trago notícias da fome / que corre nos campos tristes / soltou-se a fúria do vento/ só tu miséria, persistes” (Carlos de Oliveira), a verdade é que só depois de Abril a palavra foi definitivamente posta em circulação. Dizendo-se sem medo o poder da imaginação nas colectividades e casas do povo, nas associações e nas escolas, nas universidades e agremiações, a poesia esteve na rua? Sim, mas até chegar aí houve que fazer caminho.
Se a acção da Censura recaiu sempre mais sobre os livros de ficção, nem por isso a publicação de revistas e livros de poesia deixou de estar sob a sua alçada. À medida que o regime de Salazar-Caetano agonizava mais se apertou a malha da vigilância. Caso paradigmático da acção “moralizadora” dos censores foi a perseguição e respectivo processo judicial movido contra a publicação, em 1966, da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia e publicada por Ribeiro de Mello e as Novas Cartas Portuguesas das “três Marias”, em 1972, livros que participam duma mesma weltanschauung anti-regime que unia todos os homens e mulheres de letras e artes. Facto óbvio: a revolução começou, na literatura, na pintura, no cinema, nas mais diversas propostas de acção cultural antes de 1974, num crescendo de iniciativas que mostravam o esgotamento das velhas estruturas mentais e políticas do bafiento fascismo português.
Só para me reportar às década de 1960-70, nos dez anos que antecedem Abril, são de revolta e de enorme disrupção metafórico-alegórica, ou discursivo-imaginística livros como Cuidar dos Vivos (1963), de Fernando Assis Pacheco, um dos primeiros a expor as imagens da guerra (tema a que o poeta voltará em 72 em clave vietnamita de Câu Kiên: Um Resumo), ao mesmo tempo que adere a uma circunstancialidade urbana irrespirável e a um confessionalismo irónico e intenso através de cujo sorriso condoído se pensa o desgaste de tudo. Praça da Canção (1965) e O Canto e as Armas (67), de Manuel Alegre, mostram-no, na senda de Camões, cultor dum lirismo-épico pleno de mágoa e de ferida musicalidade cancioneiril; Feira Cabisbaixa (65), de Alexandre O’Neill, versa sobre a realidade duma “feira desmanchada” e não só reenvia para a dúvida sobre o poético, como é igualmente prova da dúvida sobre um país relativo, onde se está mas não se é.
HAVERIA QUE SUBLINHAR DOIS NOMES axiais desse período: Ruy Belo e Herberto Helder. Aquele evolui duma poesia de matriz religiosa, em 61, para livros onde ao deus ausente corresponde o aprofundamento da perda de sentido do passado num presente onde se jogam a vida e a morte, o tempo e o corpo ( Boca Bilingue, 1966; Homem de Palavra[s], 1969) vividos nesse Portugal que o mar não quer. Já Herberto é a encarnação da própria revolução em poesia antes de haver revolução na vida. Publicando colectâneas onde a máquina de emaranhar paisagens do poético é a “vocação animal” desse ofício cantante (1967), Helder edifica de forma espantosa um cântico omnívoro escrevendo(se) contra os esquemas feitos.
Poetas há que, estreados 20 anos antes, experimentam um riquíssimo segundo fôlego nesses dez anos anteriores a 74. Dois exemplos maiores: Jorge de Sena com Peregrinatio ad Loca Infecta (69), no qual o soneto “Quem muito viu” é legenda eloquente duma época de traição, e Sophia de Mello Breyner com Geografia (67) e Dual (72), cujos poemas se figuram como verdadeiras habitações vitais onde o Ser se guarda numa palavra geométrica e clássica face à certeza da morte em que se vive. Livros que são pontos luminosos e de que muitos se irão servir para atravessarem a escuridão absoluta da “longa noite do fascismo”, a palavra poética reabilita-se já na ferocidade surrealizante duma Luiza Neto Jorge ( Os Sítios Sitiados, 1973), já no maneirismo camoniano-mirandino feito desconcerto e dor dum Gastão Cruz ( Escassez, 67 e As Aves, 69).
Palavra reabilitada e viva, que encontra nas Barcas Novas (67) de Fiama - essas ominosas naus da guerra em curso - a mais magistral releitura do trovadorismo, explorando os temas da morte e da separação, palavra que significará sempre mais (“Água significa ave”) numa ritualística homenagemàliteratura (76), fazendo do poema o lugar das Novas Visões do Passado, quanto a mim, o mais belo livro de poesia publicado justamente em 1974.
Palavra de poesia feita revolução em andamento, ela é utopia-crítica num Casimiro de Brito em Jardins da Guerra (66), e em Maria Teresa Horta uma permanente busca pela erótica verbal que é já diluição de opostos e destruição de fronteiras (em Minha
Se a poesia, no fundo, é palavra em estado de revolução, gaguez produtiva ou linguagem estranha dentro da língua, a poética do período do 25 de Abril é palavra em estado eufórico demandando novas revoluções
Senhora de Mim, 67); uma busca também de justiça no originalíssimo (e sempre pouco referido) volume de 1976, Mulheres de Abril, onde o poema-reportagem consuma muita da tensão social desta autora. Poesia de antes de 74 e de depois, o discurso poético é expressão dolorista e sarcástica num Eduardo Guerra Carneiro em É Assim Que se Faz a História (73), e é aventura verbal lançada nas Inumeráveis Águas (74) dum Nuno Júdice que, com Joaquim Manuel Magalhães, lê 1974 como futuro possível e desejado e, no mesmo passo, como precipitação no “Nada total duma era vazia” ( Consequência do Lugar, 74).
Poesia, signo em rotação no paródico e teatral livro de Manuel António Pina Ainda Não é o Fim nem o Princípio do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde (74), através dos ritmos e imagens provocadores, concebendo os poemas como armas brancas, Armando Silva Carvalho, desde 1965, constrói uma dicção irónica-deceptiva, nascida do tempo adverso, mas propulsor desse verbo visceral. A palavra faz-se resistência porque propõe outro real, mesmo se produto dum Tempo de Elegia, livro de 1971 de José Carlos de Vasconcelos, fiel ao tom sóbrio e cantabile do verso. Provocação, ironia, desmontagem do poético, Melo e Castro publica em 1974 e 1975 dois livros centrais da sua bibliografia: Concepto Incerto e Cara Lh Amas no que se aproxima dum autor como Alberto Pimenta de O Labirintodonte (1970), ambos indefetíveis defensores duma arte que é derrisão da História. Antes ainda dos cravos postos em espingardas, que é a poesia? O motor potencial de uma revolução linguística, desfazendo protocolos de leitura por demais estafados.
Porque a linguagem poética se insurge contra a língua utilitária e literal e erige-se contra a palavra política e o empobrecimento do imaginário, é com razão que Rosa Maria Martelo no capital ensaio Vidro do Mesmo Vidro – tensões e deslocamentos da poesia portuguesa depois de 1961 (2007) lembra Deleuze e a ideia de que no poético há uma gaguez produtiva que instala na língua uma estranheza, uma ostensão que é, antes de mais, afirmação de revolta. A poesia, disse-o Ruy Belo, “é doença da linguagem”. Se, nos anos anteriores a Abril de 74 essa doença foi um outro nome para invectivar os “anos de pobreza” (Gastão Cruz) do Estado Novo, no ano da Revolução e nos anos seguintes, pediu-se à poesia (à melhor poesia, entenda-se) que fosse uma palavra futurante e futurável, portadora duma hipótese de sentido.
ASSIM, APONTADA NÃO AOS “AMANHÃS QUE CANTAM”, mas à própria matéria de que se alimenta – sons, frases, articulação, sentidos – é na força ficcional do poema que o 25 de Abril também se efectiva. Vemos nos anos subsequentes a 74 serem publicados autores até aí na clandestinidade. Exemplo a referir: António Borges Coelho, com reunião de poemas de entre 1959-74, Sementes da Terra e, em 81, Mar Oceano, versos escritos “Para lembrar os mortos e os vivos” e os que fraquejaram e os que não se vergaram no tempo do fascismo. Refira-se também Sidónio Muralha, Poemas de Abril e 26 sonetos, e nesse ano de 74 certas reuniões de poesia: Os Nomes, de Gastão Cruz, na colecção “Cadernos Peninsulares” da Assírio & Alvim, e na mesma colecção, para além do livro de Guerra Carneiro já citado, País Possível, de Ruy Belo, “livro possível”, antologia imperativa: “[escrita por um poeta nascido livre] e contra qualquer forma de opressão”.
O ano de 1974 é ainda de registar porque, como prova da efervescência cultural, editam-se livros como O Texto de João Zorro (Editorial Inova, de Fevereiro de 74), onde Fiama reúne poesia desde 61; o tutelar Não Posso Adiar o Coração, de António Ramos Rosa, publicado em Junho de 74, pela Plátano e, na Ática, Yvette Centeno, revelada em 60, faz sair Irreflexões. Em 75, Ary dos Santos publica, numa tiragem de 35.000 exemplares, As Portas que Abril Abriu, poema-relato-histórico do Portugal desde 1926 a 1974. Dever-se-á, neste conspecto, lembrar ainda José Gomes Ferreira e os poemas de Poeta Militante III (Moraes Editores, 1978), pertencentes ao ciclo “Maio & Abril - 1968-75”, onde lemos um dos mais lancinantes testemunhos do dia 25 de Abril de 74 (o texto XXVI que começa assim: “Manhãzinha cedo, senti acordar-me o sopro da voz ciciada de minha mulher: / - O Fafe telefonou de Cascais… Lisboa está cercada por tropas” (p.263)). É de 1977 O Nome das Coisas, de Sophia, e a quadra “25 de Abril” (“Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo”), fotografa mítica desse dia ímpar.
Em 1974 a poesia esteve na rua. Muito se publicou no imediatamente antes e no durante e depois desse “dia inicial inteiro e limpo”. Ganham relevo assuntos sociais (campesinato e operariado, reforma agrária e condições do trabalho fabril), num estilo corrente, com léxico extraído do mundo laboral. Em tempo de acções de divulga
Em 1974 a poesia esteve na rua. Muito se publicou no imediatamente antes e no durante e depois desse “dia inicial inteiro e limpo”. Ganham relevo assuntos sociais num estilo corrente, com léxico extraído do mundo laboral
ção, em tempo de campanhas de alfabetização, lembremos um verso de Daniel Filipe – sonhar a terra livre e insubmissa – que será título dum livro de Egito Gonçalves. É um desses versos que resumem a ideologia duma época. Recorde-se também Os Dias do Trigo, de 1974, de José Manuel Mendes, poemas de exaltação dos “alentejos da esperança”, e, de 1975, a edição colectiva, hoje histórica, de 12 Poemas para Vasco Gonçalves, documento que dá conta do modo como, no campo da poesia, houve penetração das ideologias, numa afirmação plena de liberdade de escolha, com barricadas desafiando-se. Àqueles 12 poemas, responde Natália Correia com a Epístola aos Iamitas, libelo anti-gonçalvista.
Nome fundamental desse período pré e pós-74 é João Miguel Fernandes Jorge que, estreado em 1971 com Sob Sobre Voz, publica entre esse ano e 1978 seis, sete livros que o colocam no epicentro interpretativo do processo que vai do fascismo à liberdade, posto que a releitura da história, nesta poesia, se faça pela óptica dum “direito de mentir” (o eco estava já em Porto Batel, de 72) que é – viu-o J. M. Magalhães - “fundamento duma escrita preocupada com as dúvidas do saber” do sujeito com o mundo e, por isso, é o poeta de Crónica o criador dum lugar único na nossa poesia e que não existia, nesses anos 70, antes dele.
“Uma revolução não vive de si mesma; um processo revolucionário não se eterniza nas suas fulgurações eufóricas”, escreveu Manuel Frias Martins em Dez anos de Poesia em Portugal – 1974/1984: Leitura de Uma Década (Caminho, 1986). Se a poesia, no fundo, é palavra em estado de revolução, gaguez produtiva ou linguagem estranha dentro da língua, a poética desse período, de que aqui tentei fazer um retrato que possibilite novas leituras, é superlativamente palavra em estado eufórico demandando novas revoluções. Houve, decerto, excessos e faltas até mesmo na poesia que cantou essa fase da nossa história. Houve quem cepticamente olhasse para Abril – caso dum Alexandre Pinheiro Torres – e escrevesse um cesárico Ressentimento dum Ocidental (81), e houve quem, ponderadamente, como um A.M. Pires Cabral com Algures a Nordeste (74), tivesse a noção de que uma revolução não pode eternizar-se por haver quem desfralde bandeiras irrealizáveis.
Porém, creio que algo foi comum a estes e outros autores que viveram Abril: a certeza de que a poesia é, em si mesmo, essa paixão veemente duma fala que abre para uma humanização total. Mesmo se Sem Palavras nem Coisas (livro de 1974 de Franco Alexandre nas Iniciativas Editoriais), a poesia está inscrita no modo humano de sermos no tempo. Nesse sentido, como palavra que é liberdade livre, a poesia, como a cantiga (Zeca, Fausto, Zé Mário Branco e Sérgio Godinho) foi uma arma de consciencialização das liberdades.