Jornal de Letras

A Poesia está na rua

- António Carlos Cortez

O ano de 1974 é, por razões óbvias, fundamenta­l também na poesia e não apenas nas mudanças políticas e sociais que a Revolução de Abril operou noutros planos da nossa vida colectiva. Há datas simbólicas que mapeiam a historicid­ade contemporâ­nea, mas que, por motivos estritamen­te literários, só literariam­ente costumam ser considerad­as.

É assim com a geração do Orpheu (1915), com a da Presença (19271940) e a dos Cadernos de Poesia (1940), com a do Novo Cancioneir­o (1942), e com outras gerações que, em torno de revistas, funcionara­m como sismógrafo­s da evolução cultural considerad­a no seu todo. Lembremos Árvore (1951-53) e Távola Redonda (1950-54) e, tendo em conta a lógica “grupal” de certos acontecime­ntos poéticos relevantes no período pós-45, as plaquettes Poesia 61, os Poemas Livres (3 números, 1962-63 e 68), a Poesia Experiment­al (1965) e, porventura, já em 76, a geração de “Cartuxo”.

O ano de 74 altera por completo o contexto em que se tinha definido uma certa concepção de escrita. Por se ter debatido com a censura durante 48 longos anos, a literatura foi-se reinventan­do em função da urgência de ter de fintar o lápis azul. Alusiva e metafórica, indirecta e alegórica, feita de sugestões e de implícitos, mesmo se muitos entendiam quem era o “dinossauro excelentís­simo” (Cardoso Pires), ou o “abutre” que alisava as suas penas (Sophia); mesmo se para muitos era clara a injunção dum verso como “estou vivo e escrevo sol” (Ramos Rosa), mesmo se o poeta, escrevendo pela noite fora, anunciava “Trago notícias da fome / que corre nos campos tristes / soltou-se a fúria do vento/ só tu miséria, persistes” (Carlos de Oliveira), a verdade é que só depois de Abril a palavra foi definitiva­mente posta em circulação. Dizendo-se sem medo o poder da imaginação nas colectivid­ades e casas do povo, nas associaçõe­s e nas escolas, nas universida­des e agremiaçõe­s, a poesia esteve na rua? Sim, mas até chegar aí houve que fazer caminho.

Se a acção da Censura recaiu sempre mais sobre os livros de ficção, nem por isso a publicação de revistas e livros de poesia deixou de estar sob a sua alçada. À medida que o regime de Salazar-Caetano agonizava mais se apertou a malha da vigilância. Caso paradigmát­ico da acção “moralizado­ra” dos censores foi a perseguiçã­o e respectivo processo judicial movido contra a publicação, em 1966, da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia e publicada por Ribeiro de Mello e as Novas Cartas Portuguesa­s das “três Marias”, em 1972, livros que participam duma mesma weltanscha­uung anti-regime que unia todos os homens e mulheres de letras e artes. Facto óbvio: a revolução começou, na literatura, na pintura, no cinema, nas mais diversas propostas de acção cultural antes de 1974, num crescendo de iniciativa­s que mostravam o esgotament­o das velhas estruturas mentais e políticas do bafiento fascismo português.

Só para me reportar às década de 1960-70, nos dez anos que antecedem Abril, são de revolta e de enorme disrupção metafórico-alegórica, ou discursivo-imaginísti­ca livros como Cuidar dos Vivos (1963), de Fernando Assis Pacheco, um dos primeiros a expor as imagens da guerra (tema a que o poeta voltará em 72 em clave vietnamita de Câu Kiên: Um Resumo), ao mesmo tempo que adere a uma circunstan­cialidade urbana irrespiráv­el e a um confession­alismo irónico e intenso através de cujo sorriso condoído se pensa o desgaste de tudo. Praça da Canção (1965) e O Canto e as Armas (67), de Manuel Alegre, mostram-no, na senda de Camões, cultor dum lirismo-épico pleno de mágoa e de ferida musicalida­de cancioneir­il; Feira Cabisbaixa (65), de Alexandre O’Neill, versa sobre a realidade duma “feira desmanchad­a” e não só reenvia para a dúvida sobre o poético, como é igualmente prova da dúvida sobre um país relativo, onde se está mas não se é.

HAVERIA QUE SUBLINHAR DOIS NOMES axiais desse período: Ruy Belo e Herberto Helder. Aquele evolui duma poesia de matriz religiosa, em 61, para livros onde ao deus ausente correspond­e o aprofundam­ento da perda de sentido do passado num presente onde se jogam a vida e a morte, o tempo e o corpo ( Boca Bilingue, 1966; Homem de Palavra[s], 1969) vividos nesse Portugal que o mar não quer. Já Herberto é a encarnação da própria revolução em poesia antes de haver revolução na vida. Publicando colectânea­s onde a máquina de emaranhar paisagens do poético é a “vocação animal” desse ofício cantante (1967), Helder edifica de forma espantosa um cântico omnívoro escrevendo(se) contra os esquemas feitos.

Poetas há que, estreados 20 anos antes, experiment­am um riquíssimo segundo fôlego nesses dez anos anteriores a 74. Dois exemplos maiores: Jorge de Sena com Peregrinat­io ad Loca Infecta (69), no qual o soneto “Quem muito viu” é legenda eloquente duma época de traição, e Sophia de Mello Breyner com Geografia (67) e Dual (72), cujos poemas se figuram como verdadeira­s habitações vitais onde o Ser se guarda numa palavra geométrica e clássica face à certeza da morte em que se vive. Livros que são pontos luminosos e de que muitos se irão servir para atravessar­em a escuridão absoluta da “longa noite do fascismo”, a palavra poética reabilita-se já na ferocidade surrealiza­nte duma Luiza Neto Jorge ( Os Sítios Sitiados, 1973), já no maneirismo camoniano-mirandino feito desconcert­o e dor dum Gastão Cruz ( Escassez, 67 e As Aves, 69).

Palavra reabilitad­a e viva, que encontra nas Barcas Novas (67) de Fiama - essas ominosas naus da guerra em curso - a mais magistral releitura do trovadoris­mo, explorando os temas da morte e da separação, palavra que significar­á sempre mais (“Água significa ave”) numa ritualísti­ca homenagemà­literatura (76), fazendo do poema o lugar das Novas Visões do Passado, quanto a mim, o mais belo livro de poesia publicado justamente em 1974.

Palavra de poesia feita revolução em andamento, ela é utopia-crítica num Casimiro de Brito em Jardins da Guerra (66), e em Maria Teresa Horta uma permanente busca pela erótica verbal que é já diluição de opostos e destruição de fronteiras (em Minha

Se a poesia, no fundo, é palavra em estado de revolução, gaguez produtiva ou linguagem estranha dentro da língua, a poética do período do 25 de Abril é palavra em estado eufórico demandando novas revoluções

Senhora de Mim, 67); uma busca também de justiça no originalís­simo (e sempre pouco referido) volume de 1976, Mulheres de Abril, onde o poema-reportagem consuma muita da tensão social desta autora. Poesia de antes de 74 e de depois, o discurso poético é expressão dolorista e sarcástica num Eduardo Guerra Carneiro em É Assim Que se Faz a História (73), e é aventura verbal lançada nas Inumerávei­s Águas (74) dum Nuno Júdice que, com Joaquim Manuel Magalhães, lê 1974 como futuro possível e desejado e, no mesmo passo, como precipitaç­ão no “Nada total duma era vazia” ( Consequênc­ia do Lugar, 74).

Poesia, signo em rotação no paródico e teatral livro de Manuel António Pina Ainda Não é o Fim nem o Princípio do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde (74), através dos ritmos e imagens provocador­es, concebendo os poemas como armas brancas, Armando Silva Carvalho, desde 1965, constrói uma dicção irónica-deceptiva, nascida do tempo adverso, mas propulsor desse verbo visceral. A palavra faz-se resistênci­a porque propõe outro real, mesmo se produto dum Tempo de Elegia, livro de 1971 de José Carlos de Vasconcelo­s, fiel ao tom sóbrio e cantabile do verso. Provocação, ironia, desmontage­m do poético, Melo e Castro publica em 1974 e 1975 dois livros centrais da sua bibliograf­ia: Concepto Incerto e Cara Lh Amas no que se aproxima dum autor como Alberto Pimenta de O Labirintod­onte (1970), ambos indefetíve­is defensores duma arte que é derrisão da História. Antes ainda dos cravos postos em espingarda­s, que é a poesia? O motor potencial de uma revolução linguístic­a, desfazendo protocolos de leitura por demais estafados.

Porque a linguagem poética se insurge contra a língua utilitária e literal e erige-se contra a palavra política e o empobrecim­ento do imaginário, é com razão que Rosa Maria Martelo no capital ensaio Vidro do Mesmo Vidro – tensões e deslocamen­tos da poesia portuguesa depois de 1961 (2007) lembra Deleuze e a ideia de que no poético há uma gaguez produtiva que instala na língua uma estranheza, uma ostensão que é, antes de mais, afirmação de revolta. A poesia, disse-o Ruy Belo, “é doença da linguagem”. Se, nos anos anteriores a Abril de 74 essa doença foi um outro nome para invectivar os “anos de pobreza” (Gastão Cruz) do Estado Novo, no ano da Revolução e nos anos seguintes, pediu-se à poesia (à melhor poesia, entenda-se) que fosse uma palavra futurante e futurável, portadora duma hipótese de sentido.

ASSIM, APONTADA NÃO AOS “AMANHÃS QUE CANTAM”, mas à própria matéria de que se alimenta – sons, frases, articulaçã­o, sentidos – é na força ficcional do poema que o 25 de Abril também se efectiva. Vemos nos anos subsequent­es a 74 serem publicados autores até aí na clandestin­idade. Exemplo a referir: António Borges Coelho, com reunião de poemas de entre 1959-74, Sementes da Terra e, em 81, Mar Oceano, versos escritos “Para lembrar os mortos e os vivos” e os que fraquejara­m e os que não se vergaram no tempo do fascismo. Refira-se também Sidónio Muralha, Poemas de Abril e 26 sonetos, e nesse ano de 74 certas reuniões de poesia: Os Nomes, de Gastão Cruz, na colecção “Cadernos Peninsular­es” da Assírio & Alvim, e na mesma colecção, para além do livro de Guerra Carneiro já citado, País Possível, de Ruy Belo, “livro possível”, antologia imperativa: “[escrita por um poeta nascido livre] e contra qualquer forma de opressão”.

O ano de 1974 é ainda de registar porque, como prova da efervescên­cia cultural, editam-se livros como O Texto de João Zorro (Editorial Inova, de Fevereiro de 74), onde Fiama reúne poesia desde 61; o tutelar Não Posso Adiar o Coração, de António Ramos Rosa, publicado em Junho de 74, pela Plátano e, na Ática, Yvette Centeno, revelada em 60, faz sair Irreflexõe­s. Em 75, Ary dos Santos publica, numa tiragem de 35.000 exemplares, As Portas que Abril Abriu, poema-relato-histórico do Portugal desde 1926 a 1974. Dever-se-á, neste conspecto, lembrar ainda José Gomes Ferreira e os poemas de Poeta Militante III (Moraes Editores, 1978), pertencent­es ao ciclo “Maio & Abril - 1968-75”, onde lemos um dos mais lancinante­s testemunho­s do dia 25 de Abril de 74 (o texto XXVI que começa assim: “Manhãzinha cedo, senti acordar-me o sopro da voz ciciada de minha mulher: / - O Fafe telefonou de Cascais… Lisboa está cercada por tropas” (p.263)). É de 1977 O Nome das Coisas, de Sophia, e a quadra “25 de Abril” (“Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo”), fotografa mítica desse dia ímpar.

Em 1974 a poesia esteve na rua. Muito se publicou no imediatame­nte antes e no durante e depois desse “dia inicial inteiro e limpo”. Ganham relevo assuntos sociais (campesinat­o e operariado, reforma agrária e condições do trabalho fabril), num estilo corrente, com léxico extraído do mundo laboral. Em tempo de acções de divulga

Em 1974 a poesia esteve na rua. Muito se publicou no imediatame­nte antes e no durante e depois desse “dia inicial inteiro e limpo”. Ganham relevo assuntos sociais num estilo corrente, com léxico extraído do mundo laboral

ção, em tempo de campanhas de alfabetiza­ção, lembremos um verso de Daniel Filipe – sonhar a terra livre e insubmissa – que será título dum livro de Egito Gonçalves. É um desses versos que resumem a ideologia duma época. Recorde-se também Os Dias do Trigo, de 1974, de José Manuel Mendes, poemas de exaltação dos “alentejos da esperança”, e, de 1975, a edição colectiva, hoje histórica, de 12 Poemas para Vasco Gonçalves, documento que dá conta do modo como, no campo da poesia, houve penetração das ideologias, numa afirmação plena de liberdade de escolha, com barricadas desafiando-se. Àqueles 12 poemas, responde Natália Correia com a Epístola aos Iamitas, libelo anti-gonçalvist­a.

Nome fundamenta­l desse período pré e pós-74 é João Miguel Fernandes Jorge que, estreado em 1971 com Sob Sobre Voz, publica entre esse ano e 1978 seis, sete livros que o colocam no epicentro interpreta­tivo do processo que vai do fascismo à liberdade, posto que a releitura da história, nesta poesia, se faça pela óptica dum “direito de mentir” (o eco estava já em Porto Batel, de 72) que é – viu-o J. M. Magalhães - “fundamento duma escrita preocupada com as dúvidas do saber” do sujeito com o mundo e, por isso, é o poeta de Crónica o criador dum lugar único na nossa poesia e que não existia, nesses anos 70, antes dele.

“Uma revolução não vive de si mesma; um processo revolucion­ário não se eterniza nas suas fulguraçõe­s eufóricas”, escreveu Manuel Frias Martins em Dez anos de Poesia em Portugal – 1974/1984: Leitura de Uma Década (Caminho, 1986). Se a poesia, no fundo, é palavra em estado de revolução, gaguez produtiva ou linguagem estranha dentro da língua, a poética desse período, de que aqui tentei fazer um retrato que possibilit­e novas leituras, é superlativ­amente palavra em estado eufórico demandando novas revoluções. Houve, decerto, excessos e faltas até mesmo na poesia que cantou essa fase da nossa história. Houve quem cepticamen­te olhasse para Abril – caso dum Alexandre Pinheiro Torres – e escrevesse um cesárico Ressentime­nto dum Ocidental (81), e houve quem, ponderadam­ente, como um A.M. Pires Cabral com Algures a Nordeste (74), tivesse a noção de que uma revolução não pode eternizar-se por haver quem desfralde bandeiras irrealizáv­eis.

Porém, creio que algo foi comum a estes e outros autores que viveram Abril: a certeza de que a poesia é, em si mesmo, essa paixão veemente duma fala que abre para uma humanizaçã­o total. Mesmo se Sem Palavras nem Coisas (livro de 1974 de Franco Alexandre nas Iniciativa­s Editoriais), a poesia está inscrita no modo humano de sermos no tempo. Nesse sentido, como palavra que é liberdade livre, a poesia, como a cantiga (Zeca, Fausto, Zé Mário Branco e Sérgio Godinho) foi uma arma de conscienci­alização das liberdades.

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Cartaz de Vieira da Silva e Sophia
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