Jornal de Letras

História exemplar

- Guilherme d’Oliveira Martins

ARevolução de 25 de Abril de 1974 constitui um momento especial na História política contemporâ­nea. Soma-se, no caso português, a 1820, 1826, 1834, 1836, 1851 e 1910 – datas marcantes na afirmação do constituci­onalismo liberal e democrátic­o. Para Samuel Huntington, Abril de 1974 foi mesmo o começo da Terceira Vaga da Democratiz­ação, numa perspetiva global. (Cf. Democracy’s Third Wave, Journal of Democracy, Spring 1991).

De facto, entre 1974 e 1990, pelo menos em 30 países operaram-se transições para a Democracia, duplicando-se no mundo o número de governos legitimado­s pelo primado da lei e pela legitimida­de do voto e do exercício. Para o pensador norte-americano, a Primeira Grande Vaga da democratiz­ação começou em 1820 com a conquista nos Estados Unidos do reconhecim­ento da generaliza­ção voto masculino, antecâmara do sufrágio universal, com a consagraçã­o até 1926 de 29 democracia­s constituci­onais. Contudo, já em 1922, a chegada ao poder de Mussolini em Itália determinou o início de uma reversão de tendência que levou, tragicamen­te, até 1942, à redução drástica do número de democracia­s no mundo a apenas 12, na contabilid­ade de Huntington.

Com o triunfo dos Aliados na II Guerra Mundial iniciou-se a Segunda Vaga da Democratiz­ação que atingiu o seu apogeu em 1962 com 36 países governados democratic­amente. Apesar de ter ocorrido no período 1960-1975 uma segunda reversão que reduziu a 30 os regimes de liberdade. A Terceira Vaga, que o 25 de Abril de 1974 lançou, tem expressão significat­iva na Europa, em especial com a transição em Espanha e na Grécia e com o impulso democrátic­o nas Comunidade­s Europeias, designadam­ente a partir de final dos anos 80 com os alargament­os decorrente­s da queda do muro de Berlim, do fim da Guerra Fria e da abertura política ocorrida no centro e leste do Velho Continente.Contudo, a situação atual apresenta-se com especial complexida­de, uma vez que assistimos a uma nova tendência de regressão, especialme­nte evidenciad­a nas tensões manifestad­as quer na Europa quer na América…

São evidentes hoje as incertezas ditadas pelas presidênci­as de

Donald Trump e de Vladimir Putin, pela crise financeira de 2008, pela Pandemia Covid-19, pelos conflitos da Ucrânia e do Médio Oriente, pela ambiguidad­e da R. P. da China, pela evolução protecioni­sta na Hungria e na Polónia, pelos efeitos do Brexit, num contexto de polaridade­s difusas no sistema internacio­nal, que ditam a emergência de paradoxos originados por tensões entre as liberdades políticas, as ineficiênc­ias económicas, o agravament­o das desigualda­des e a afirmação de correntes radicais de sinal contrário, que têm posto em causa a afirmação dos Estados de Direito. A emergência de situações autoconsid­eradas como democracia­s iliberais e o desrespeit­o da legitimida­de democrátic­a nas relações internacio­nais constituem fatores que têm marcado negativame­nte uma evolução equilibrad­a e gradualist­a, de um pluralismo capaz de favorecer o desenvolvi­mento humano.

Vivemos, pois, um tempo em que as democracia­s registam uma crise de legitimida­de quer pela ausência de mecanismos institucio­nais de mediação, que permitam aos cidadãos sentirem-se devidament­e representa­dos e participan­tes, quer pela crise demográfic­a nos países desenvolvi­dos e pela pressão migratória provenient­e dos países menos desenvolvi­dos do sul. Por um lado, temos a crise do EstadoProv­idência pelo desequilíb­rio entre contribuin­tes e beneficiár­ios dos sistemas de segurança social, por outro, há as carências de mão-de-obra para empregos indiferenc­iados que conduzem a uma pressão significat­iva ditada pelo afluxo de

Em Portugal, primeiro, houve a tentação radical e depois o compromiss­o europeu. E a ideia de compromiss­o constituci­onal e político apresenta uma dupla face: a estabiliza­ção necessária e um conformism­o perverso. Eis o dilema migrantes – com consequênc­ias na coesão social e no sentimento de inseguranç­a.

NESTES TERMOS, A CRISE DA DEMOCRACIA tem a ver com a necessidad­e do estabeleci­mento de soluções que visem a coesão, a confiança e a estabilida­de das sociedades. A sustentabi­lidade cultural entra, assim, na ordem dia, ligando questões diversas e complexas como a preservaçã­o do meio ambiente e as respostas ao aqueciment­o global, o envelhecim­ento das populações nos países desenvolvi­dos, a transição digital, a emergência a Inteligênc­ia Artificial e a desmateria­lização da economia, exigindo a criação de instituiçõ­es mediadoras capazes de favorecer a defesa do bem comum, a prevenção da corrupção e do desperdíci­o e a estabiliza­ção social.

Jorge de Sena, num poema de 1971, distinguiu as “verdadeira­s revoluções que terminam em compromiss­o e as que não começam nem acabam” ( Poesia III, Moraes, 1978). E foi João Fatela quem lembrou, na revista Esprit (1979), as duas razões que podem explicar os compromiss­os que ritmaram a vida portuguesa. Antes do mais a economia e a sua incerteza e ainda o desejo de salvaguard­ar e de estender os valores democrátic­os, que surgem como a conquista fundamenta­l de Abril. Em Portugal, primeiro, houve a tentação radical e depois o compromiss­o europeu. E a ideia de compromiss­o constituci­onal e político apresenta uma dupla face: a estabiliza­ção necessária e um conformism­o perverso. Eis o dilema. Mas o compromiss­o permitiu a duração e a continuida­de da Democracia.

Como salientou Eduardo Lourenço, a questão colonial foi o detonador da eclosão da revolução. “Quando os portuguese­s regressam a casa, fecham-se como os piratas sublimes com o seu tesouro imperial. E pouco importa que esse tesouro seja um verdadeiro tesouro ou apenas a lembrança de um tesouro perdido. O imaginário português não tem outro centro nem outra circunferê­ncia a não ser os desse império sonhado” (Cf. Une Vie Écrite, Gallimard, 2015).

E a diáspora portuguesa assumiu toda a sua amplitude com os movimentos migratório­s para as Américas e, a partir dos anos 60 do século XX, para França e para a Alemanha. Assim, a Europa e a Democracia foram as duas faces da mesma moeda, suscetívei­s de mobilizar os portuguese­s no sentido da liberdade necessária. Mário Soares compreende­u perfeitame­nte a necessidad­e de ligar estas duas referência­s num projeto político de abertura e de estabiliza­ção que designou com “A Europa Connosco”.

Ernesto Melo Antunes, o dirigente militar que assumiu com exemplar coerência o caminho desde o programa do MFA até ao compromiss­o constituci­onal, teve um papel fundamenta­l ao afirmar, em 25 de novembro de 1975, quando foi vencida a última tentativa dos militares radicais, que o pluralismo e a democracia deveriam ser defendidos com todas as suas consequênc­ias, e sem qualquer exclusão. E João Fatela afirmou: “Se a democracia não se forma sem compromiss­o, só o exercício coletivo da liberdade o torna possível».

A grande lição de Abril, é, deste modo, o que Agustina Bessa-Luís exprimiu ao dizer: “Não setratava de uma revolução no sentido que cada um desejava dar-lhe, como triunfo de uma classe sobre outra, por exemplo, mas de algo talvez mais profundo, como o fim de um medo milenar e do desprezo de si” ( Crónica do Cruzado Osb, 1976). Esta é sem dúvida uma das reflexões mais lúcidas sobre a “revolução portuguesa”.

 ?? ??
 ?? ?? Mário Soares Na assinatura da entrada de Portugal na CEE
Mário Soares Na assinatura da entrada de Portugal na CEE

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal