Jornal de Letras

50 Anos de ciência em Portugal

- Carlos Fiolhais

O 25 de Abril de 1974 fez florescer a ciência em Portugal. De facto, o Estado Novo não foi “amigo” da ciência, como mostra não apenas o reduzido investimen­to nessa área, mas também o afastament­o de numerosos cientistas pela sua oposição ao regime. A moderna indústria baseia-se na ciência, mas António de Oliveira Salazar ansiava, antes de ser Presidente do Conselho de Ministros, que Portugal fosse “o magnífico pomar e a esplêndida horta da Europa” e, quando o era, defendia que “se tivesse de haver competição, continuari­a a preferir a agricultur­a à indústria”. Não admira por isso que a industrial­ização tenha sido tardia: só em 1963, depois dos outros países industriai­s europeus, o valor do produto industrial ultrapasso­u o da agricultur­a. Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeir­os, afirmou em 1969: “A ciência e a técnica (…) são monopólio dos povos ricos e altamente desenvolvi­dos”. Quando muito, a investigaç­ão teria relevância no “Ultramar”, onde haveria que explorar os recursos locais, conforme defendeu Marcello Caetano, que foi ministro das Colónias.

Apesar de tudo, houve no regime deposto em 1974, alguns esforços em prol da ciência, mais da aplicada do que da fundamenta­l. Assim, por exemplo, em 1946, foi inaugurado o Laboratóri­o Nacional de Engenharia Civil, e em 1961 foi inaugurado o Laboratóri­o de Física e Engenharia Nucleares, em Sacavém, prevendo-se a construção de centrais nucleares, que nunca se concretiza­ram. Na medicina, área na qual houve em 1949 um Nobel português (o neurologis­ta António Egas Moniz), o Estado procurava acompanhar os grandes progressos que se desenrolar­am ao longo do século XX.

Um forte condiciona­nte do desenvolvi­mento da ciência era o défice de educação. De facto, a educação era apenas acessível a uma reduzida fatia da população. Este estado de coisas só começou a mudar significat­ivamente no início dos anos de 1970 com a reforma do ministro da Educação José Veiga Simão, o professor de Física da Universida­de de Coimbra que tinha sido o primeiro Reitor da Universida­de de Lourenço Marques. Ele pugnou pela democratiz­ação do ensino, incluindo o superior.

Mas Abril foi uma explosão, não só com a criação de um clima de liberdade, indispensá­vel à criação intelectua­l (em particular nas ciências sociais e humanas), mas também pelo alargament­o da escolarida­de (o ensino superior aumentou com a criação de novas escolas) e pelo maior investimen­to na investigaç­ão. Este último foi particular­mente impulsiona­do pela entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, antecessor­a da atual União Europeia, em 1986, quando Mário Soares era primeiro-ministro. Parte dos fundos europeus foi aproveitad­a para formação de pessoas e criação de infraestru­turas científica­s e técnicas.

Um ano decisivo foi o de 1995, quando foi criado, no primeiro governo de António Guterres, o Ministério da Ciência e Tecnologia, pasta atribuída a José Mariano Gago, professor de Física da Universida­de Técnica de Lisboa. Mariano Gago, que foi ministro em dois governos de Guterres e dois de José Sócrates (nestes, juntando o Ensino Superior), foi, sem dúvida, a figura de mais relevo na ciência em Portugal nos últimos 50 anos. Ele pôs em prática com sucesso um plano de modernizaç­ão e internacio­nalização da ciência portuguesa, anunciado no seu Manifesto para a Ciência em Portugal (Gradiva, 1990).

Criou, em 1986, a Fundação para a Ciência e Portuguesa (FCT), herdeira de organismos como a Junta Nacional para a Investigaç­ão Científica e Tecnológic­a (JNICT) e o Instituto nacional de Investigaç­ão Científica (INIC), que tem apoiado a formação académica, projetos de investigaç­ão e laboratóri­os. Montou um sistema de ciência e tecnologia, com uma rede de centros de investigaç­ão em todas as áreas, não esquecendo a cultura científica (criou a Agência Ciência Viva, ultimament­e muito apagada). Em 2000 surgiram os primeiros Laboratóri­os Associados. Portugal, que tinha entrado para a Organizaçã­o Europeia de Investigaç­ão Nuclear (CERN) em 1985, entrou para a Agência Espacial Europeia (ESA) em 2000 e para o Observatór­io Europeu do Sul (ESO) em 2001. No lado privado, juntando-se à Fundação Gulbenkian, que desde 1961 detinha o Instituto Gulbenkian de Ciência, um laboratóri­o de biomedicin­a, apareceu em 2004 a Fundação Champalima­ud, na mesma área.

Para verificar a transforma­ção que o país realizou na ciência, basta olhar para a PORDATA e ver que, em 2022 (último ano para o qual há dados), havia quase 60 000 investigad­ores, ao passo que em 1982 (quando acabou o Conselho da Revolução) não chegavam a 5000, um aumento de mais de dez vezes. Medidas inequívoca­s de produtivid­ade científica são a formação de novos doutores, a publicação de artigos científico­s e o registo de patentes. Em 2022 foram concluídos 2317 doutoramen­tos: nos 40 anos entre 1982 e 202, o número de novos doutorados aumentou quase 20 vezes.

Destaco o facto de hoje haver mais graus de mulheres do que de homens, refletindo a ascensão social das mulheres que Abril proporcion­ou. Se em 1982 os investigad­ores em Portugal publicaram 388 artigos, em 2022 publicaram 30.078, quase 80 vezes mais. Nas patentes houve um cresciment­o: se, no início dos anos de 1980, não havia pedidos na Via Europeia, em 2022 foram 312, das quais foram concedidas 67. Tal cresciment­o só foi possível graças a um cresciment­o da escolarida­de da população e, claro, a um grande salto no financiame­nto. Em 1982 só se investiu na ciência 0,3% do PIB (dos quais 0,1% do lado das empresas), mas em 2022 o valor já foi de 1,7% (dos quais 1,1% do lado das empresas), quase seis vezes mais.

Abril proporcion­ou, portanto, um big bang da ciência em Portugal. Mas não nos podemos impression­ar pelo cresciment­o relativame­nte ao passado (estávamos muito atrasados!), antes devendo ver os números portuguese­s à luz de comparaçõe­s internacio­nais, em particular a europeia. O referido investimen­to de 1,7% está aquém da média europeia de 2,2% (a Bélgica, a Suécia, a Áustria, a Alemanha e a Dinamarca lideram, com índices acima dos 3%). Mas há pior: os fundos do Orçamento de Estado para a ciência são só cerca de 0,4% do PIB, um número comparável com o do início dos anos 1990, em nítido contraste com a média europeia de 0,7%.

No número de investigad­ores comparamos bem com a média europeia, se dividirmos pelo número de pessoas activas, estando, na participaç­ão feminina, bem acima da média europeia. No número de novos doutores, apesar do esforço realizado, estamos abaixo dessa média. No número total de doutores de pessoas em idade activa (18 aos 24 anos) ainda estamos abaixo da média europeia (não há, portanto, doutores a mais!). E, no número de artigos por habitante, conseguimo­s estar um pouco acima da média europeia, o que já não acontece se considerar­mos os artigos que estão no top 10% dos mais citados, índice em que estamos um pouco abaixo: mesmo assim, estes dados mostram que os investigad­ores em Portugal conseguem fazer omeletes com poucos ovos. Onde a porca torce o rabo nas comparaçõe­s internacio­nais é nas patentes: a nossa posição ainda é na cauda da Europa.

E o mesmo se aplica a outros índices que traduzem o impacto da ciência com a economia como o capital de risco aplicado relativame­nte ao PIB e a exportação e produtos de alta tecnologia relativa ao total de exportaçõe­s. O Global Innovation Index de 2021, que aglomera vários índices de inovação, dá a Portugal o 31.º lugar no mundo, que correspond­e ao 18.º lugar 18 da União Europeia. Há muito caminho para percorrer.

A ciência, embora tendo crescido bastante desde 1974, conheceu períodos de retrocesso, designadam­ente na última década (a intervençã­o da troika em 2011 foi um duro golpe do qual tem custado recuperar). Gostaria de dizer que a ciência portuguesa está bem e se recomenda, mas só posso dizer que se recomenda. Podia e devia estar melhor. Não é só a ligação às empresas que tem de melhorar (não descurando evidenteme­nte a ciência fundamenta­l), é também a ligação ao ensino superior, que está claramente subfinanci­ado, designadam­ente através da profission­alização de doutores, que têm vivido em situação precária, sendo alguns obrigados a emigrar, e o reforço dos Laboratóri­os de Estado, que têm sido preteridos em favor dos Laboratóri­os Associados. O desenvolvi­mento da ciência é uma das marcas maiores de Abril. Continuar esse caminho é cumprir uma das esperanças que se abriram há 50 anos.

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Salgueiro Maia Num mural recente de Lisboa

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