Jornal de Letras

Madalena e a revolução

- Manuel Halpern

Parto agora para não partir para sempre, parte comigo para não me partires o coração”, era o que estava escrito no bilhete de despedida que Amílcar deixara a Madalena, no dia da sua partida, não sabendo que regressari­a ainda antes de chegar. O desafio era ousado, sugeria uma fuga, à revelia dos pais dela, que nunca permitiria­m a aventura. O seu pai, de resto, também não. Dizia que desertar era a mais vil das covardias e uma desonra para a família. A mãe chorava. Amílcar acenava enquanto secretamen­te montava o plano de fuga, com a ajuda de quem sabe.

Na madrugada de 25 de Abril de 1974 estava um frio de rachar, as pessoas andavam de pullover mesmo apesar da adrenalina do momento. Em Abril de 2024 do céu permanece quente e seco, o mês com as temperatur­as mais altas desde que há registos. Há coisas que Abril não conquistou.

Amílcar levantou-se ainda antes do sol nascer. Decidira que aquele era o dia e não podia falhar. Fizera a mala de véspera e deixara tudo debaixo da cama, deixando à vista sinais de quem, simplesmen­te, tinha saído mais cedo para ir para a universida­de. Levava consigo dinheiro de bolso, um relógio de ouro e botões de punho, para o que der e vier.

O céu estava nublado e Amílcar, delicadame­nte, partiu para o seu destino. Na praça ainda estavam a montar as bancas. Pediu à florista uma rosa vermelha, ela deu-lhe cravos. Desceu a rua, em direção ao bairro dos atores, e com a perícia de um basquetebo­lista, fez com que uma pequena pedra atingisse o vidro janela do segundo andar do prédio cor de rosa. Madalena abriu a portada e viu Amílcar a atirar um ramo de cravos, com um papel amarrado. Ela leu e sorriu.

No 25 de Abril de 1974, as senhas foram canções passadas nas rádios, hoje em dia o comité teria de preparar um vídeo para o TikTok. Se houvesse telemóveis na altura Amílcar teria provavelme­nte recebido uma mensagem avisando do sucedido. Assim manteve-se triste, na incerteza. Quando Madalena se preparava sorrateira­mente para sair, um chiar de porta acordou o pai, que a deixou trancada em casa durante dois dias.

Amílcar sempre partiu. Estranhou o movimento àquela hora, mas aproveitou a confusão para se esconder no vagão de mercadoria­s, como estava combinado e deixou-se ficar com os seus pensamento­s Já estava para lá de Valladolid, quando, por mero acaso, se cruzou com a notícia do golpe em Portugal. Não iria nem mais um soldado para as colónias, o país estava liberto da ditadura fascista. Agora, só faltava mesmo libertar Madalena.

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