“Era uma vez Sete”
Eis o desafio: escolher livros da biblioteca pessoal que seriam proibidos pela censura durante a ditadura do Estado Novo. A literatura responde com sete obras de autoras audazes
O tempo – inevitável, curto e fugidio - estabelece muitas das escolhas de leitura. Nas mais recentes, as vozes literárias têm uma sintonia inesperada e inconsciente. Os livros, que ficam em registo memorável, são assinados por escritoras. As histórias, entre o relato biográfico e a projeção de personagens femininas, têm sido inspiração. Desde a leitura, na adolescência, de Madame Bovary, de Flaubert, que o mundo ali sugerido suscitou muitas questões sobre a figura feminina na literatura. Daí a busca começou, não por uma questão de formatação mental, mas por uma necessidade de identificação.
Neste exercício de encontro com livros livres, a arrumação em casa torna claro o sentido de cada prateleira, em fundamentação feminina.
1- A HISTÓRIA DE UMA SERVA, MARGARET
ATWOOD (1985)
A distopia imaginada pela romancista canadiana é lida como se fosse real. Muitas personagens e cenas têm evidentes semelhanças com atitudes e ações políticas e sociais, antes tão distantes, agora tão próximas. A redução do “ser” mulher como sujeito inferior, subordinada aos papéis de reprodução e de manutenção do “lar”, numa sociedade dominada pela violência patriarcal, é o conceito do livro. Entre a emoção e a repugnância, é assustador perceber essa certa premonição de Atwood. É uma edição Bertrand.
2- ACONTECIMENTO, ANNIE ERNAUX (2000)
O relato, puro e duro de um aborto. Por acaso, aconteceu na vida da autora. Por acaso, acontece a mulheres. A importância de contar esta história, através da experiência pessoal, pela escrita da Nobel da Literatura, remete-nos para a empatia e a necessidade de melhor entender quem ao nosso lado pode estar. É uma edição Livros do Brasil. 3- BILHETE DE IDENTIDADE, MARIA FILOMENA
MÓNICA (2005)
A autobiografia da socióloga, para além da vida pessoal, é um dos mais intensos retratos da condição feminina em Portugal. Quando a li, emocionei-me. A clareza e retidão desta mulher, antecipa a urgente emancipação feminina em Portugal, com a lei a acompanhar. Maria Filomena Mónica é um dos meus exemplos de vida. Grata. É uma edição Relógio D’Água.
4- CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS, ISABELA
FIGUEIREDO (2009)
Pouco sabia da Guerra Colonial e da história que teve de chegar às outras margens do colonialismo. A escola mantém uma névoa de desconhecimento sobre esta matéria, tão dramática e importante para a História. Isabela de Figueiredo recorre à lembrança traumática desses tempos, em que as alegrias se juntam às tragédias humanas. A edição mais recente
é da Caminho.
5- ESTRA
NHEZAS, MARIA TERESA HORTA (2018)
Caso a Poesia fosse Olimpo e tivesse deusas a celebrar, Maria Teresa Horta estaria em trono de ouro e sagradas palavras. Esta escrita de corpo e amor é mais do que literatura. É lugar intimista. A biografia recentemente publicada por Patrícia Reis melhor elucida sobre como a vida vivida melhor se transforma em poesia quando de manifesta a dor e o prazer em canto poético. É uma edição D. Quixote.
6- AVALANCHE, MARTA CHAVES (2021)
Gostava, sim, de trazer sempre em mão cada verso seu. A subtileza, quase matemática, de tanto rigor imagético, é cortante. Sem adorno ou fantasia, a poesia de Marta Chaves devolve-nos à realidade dos sentimentos, a integralidade necessária à aprendizagem, pura filosofia de vida. É uma edição Assírio & Alvim
7- TODA A FERIDA É UMA BELEZA, DJAIMILIA
PEREIRA DE ALMEIDA (2023)
Para chorar, é necessário que o corpo se manifeste incomodado. Da cabeça ao coração, muitos dias me demorei a ler este livro pequeno. A inocência retratada pela voz de uma menina é de uma violência que nos devolve à humanidade. Para além da brilhante literatura de Djaimilia Pereira de Almeida, há também a ilustração magnífica de Isabel Baraona. É uma edição Relógio D’Água. J