Correspondência
José Afonso
“Gostaria que me lembrassem como um homem sério, que lutou pelo bem do povo português. Como um patriota e um homem honrado”, dizia-me, na quase penumbra duma sala de sua casa, em meados de abril de 2005, o general Vasco Gonçalves (VG) no que foi a sua última entrevista, após um longo silêncio em todos os sentidos. Menos de um mês depois, a 11 de junho, aos 84 anos, morreu o que fora destacado elemento do Movimento das Forças Armadas (MFA), primeiro-ministro de quatro governos, entre julho de 1974 e setembro de 1975, figura icónica da Revolução.
Quando foi escolhido pelos seus camaradas do MFA para suceder a Adelino da Palma Carlos, VG era respeitado e admirado: era o mais velho e de mais alta patente (coronel) dirigente do Movimento, a cuja comissão coordenadora do programa pertencera; homem culto e engenheiro civil de reconhecida competência, tinha sido professor na Escola do Exército.
Democrata de esquerda e já ligado a uma das tentativas revolucionárias anteriores contra o regime – a ala spinolista preferiria outro primeiro-ministro, como Firmino Miguel. Mas “o companheiro Vasco”, como mais tarde chamado pelos seus entusiastas apoiantes, foi no princípio um chefe de Governo com posições moderadas e conciliadoras.
À medida, porém, que se agudizaram os problemas e conflitos – para uma “revolução”, aliás, muito pacíficos – essas posições foram-se radicalizando, sobretudo a partir do 11 de março de 1975. Tratar-se-ia, segundo VG, de formação marxista, uma direta consequência da “luta de classes”. Em que tomou inequivocamente partido pelos “trabalhadores”, começando a ser acusado de pertencer ao PCP. A que de facto nunca pertenceu, como me garantiu, admitindo haver, porém, durante o
PREC, muitas coisas em que estavam de acordo.
Com os seus discursos empolgados, e às vezes “desarrumados”, com uma mensagem e palavras simples, diretas, VG tornou-se num certo símbolo de uma certa revolução. E a dada altura foi o mais amado e o mais odiado militar do 25 de Abril e político: inventou-se um tenebroso papão chamado “gonçalvismo”, que se manteve durante décadas; poetas, como Eugénio de Andrade, dedicaram-lhe poemas; e há muito afastado do poder ainda havia mãos anónimas que deixavam cravos vermelhos à porta de sua casa.
No PREC, jornalistas e cidadão, eu estava do outro lado, com os “nove”, o Vasco Lourenço, o Melo Antunes, o Salgueiro Maia. No entanto, então como agora, sem nunca pôr em causa a seriedade, a sinceridade, a generosidade de objetivos de Vasco Gonçalves. Foi com esta ideia que fiquei desde que o conheci, num encontro com jornalistas, estando eu na direção do Diário de Notícias e tendo ele acabado de assumir a chefia do governo.
E no famoso domingo, 6 de outubro, “dia de trabalho para a Nação”, VG convidou-me para almoçar, na residência em S. Bento, para onde, por razões de segurança, o aconselharam ou forçaram a mudar-se. Ele sabia versos meus, do Corpo de Esperança, livro editado pela Vértice, que assinava, a modesta comida vinha de fora. E notei que quando entrava na sala a senhora que a trazia VG calava-se ou mudava de assunto (falava-se de política). E então explicou-me: a senhora era casada com um Pide, preso, e ele não queria dizer qualquer coisa que a pudesse magoar...
Haverá melhor prova de humanidade e humanismo? Por mim, sem esquecer tudo o que fez mal, lembro Vasco Gonçalves como ele me disse gostaria que o lembrassem.