A banda sonora de uma revolução
Quando se fala de música e 25 de Abril ocorre-nos logo o cancioneiro da chamada música de intervenção ou canção de protesto, na designação anglo-saxónica. Mas, na verdade, não foi o 25 de Abril que (re)inventou este tipo de música. Pelo contrário, quem (re)inventou a canção de intervenção foi indiretamente a própria ditadura, pois esta nasce da necessidade de encontrar uma expressão cultural que sirva de veículo da luta contra o regime que se vivia.
A música de intervenção portuguesa tinha já, claro está, os seus antecedentes, embora numa outra configuração. Se pensarmos bem, a própria letra do hino nacional, A Portuguesa, da autoria de Henrique Lopes de Mendonça (música de Alfredo Keil), aparece num contexto patriótico, de contestação perante a fragilidade apresentada pelo governo perante o Ultimato inglês. E, no limite, podemos encontrar subtis sinais de intervenção bem lá atrás, no papel dos jograis, nas canções entoadas nas peças de Gil Vicente, ou nas Cantigas de Escárnio e Mal Dizer.
No século XX, sabemos que houve uma tradição de fado operário e anarquista que com o tempo se perdeu, e estava já quase desaparecida nos anos 1930. Sabemos também que António Lopes Graça, com as suas “Canções Heróicas”, a partir do final dos anos 1940, teve um papel de alguma forma pioneiro, fazendo uma música erudita de inspiração tradicional (ao exemplo de Béla Bartók), com engajamento político. Todavia a canção de intervenção portuguesa, tal como a conhecemos, foi na sua base uma criação coimbrã, tendo como maior mestre José Afonso. É certo que outros seus contemporâneos usaram as palavras das canções para fins de oposição política ao fascismo, nomes como Luís Goes, Luís Cília ou Adriano Correia de Oliveira, mas foi Zeca que estabilizou o formato, com uma música de cariz popular, absorvendo influências diversificadas, mas de grande qualidade e originalidade, com o intuito de passar uma mensagem direta ou indiretamente contra o regime. É marcante o lançamento dos singles “O Menino do Bairro Negro” e “Os Vampiros”, em 1963, que galvanizaram a oposição ao regime. E tornaram-se um exemplo para muitos
Ou seja, a música de intervenção não é uma consequência do 25 de Abril, mas antes uma das suas causas, uma expressão artística de impacto popular que contribuiu para a queda do regime fascista. De resto, a revolução, como se sabe, teve direito a banda sonora. Para primeira senha foi escolhido “E Depois do Adeus”, tema de José Niza e José Calvário, cantado por Paulo de Carvalho, que ganhara o festival da canção no ano anterior. Para segunda senha, sinal que a revolução era irreversível, escolheu-se “Grândola Vila Morena”, de José Afonso, tema que ficará para sempre como um hino de Abril, da Democracia e da Liberdade. Seguindo o caminho de Zeca Afonso, apareceram vários nomes ainda antes do 25 de Abril, com destaque para José Mário Branco e Sérgio Godinho. Estes, assim como muitos outros, tiveram um percurso extraordinário antes e depois do 25 de Abril. Assumindo, muitos deles, durante o PREC, a missão de divulgar pelo país inteiro os ideais da revolução. Deste período ouve canções simples que toda a gente entoava e que ajudaram a consolidar os valores de Abril, como “A Gaivota”, por Ermelinda Duarte, ou “Canta Amigo Canta”, de António Macedo, para não falar de Francisco Fanhais, José Jorge Letria, a Banda do Casaco, a Brigada Vítor Jara, o Grupo de Ação Cultural, Vitorino e os irmãos Salomé, Fausto Bordalo Dias, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e tantos, tantos outros. Um dos casos mais interessante é José Barata Moura. O músico e prof universitário desenvolveu um cancioneiro muito marcante dedicado ao público infantil, em que expressava todos os ideias de igualdade e fraternidade.
Antes do 25 de Abril, a censura não era apenas política e ideológica, havia efetivamente uma censura moral, que abrangia não só música portuguesa como também a importada lá de fora. Eram muitas as canções proibidas e Portugal ficava afastado de alguns dos grandes movimento artísticos mundiais, que só a muito custo conseguiam chegar Às rádios ou aos gira-discos (trazido por alguém vindo de fora). A isto acresce-se a auto censura de algumas rádios e a pressão social contra fenómenos ligados à música moderna. Na lista de temas visados pela censura encontramos bandas aparentemente inocente, como os Sheiks ou o Quarteto 1111 de José Cid. Algumas coisas passavam nas entrelinhas, como “O Cochicho”, música popular cantada por Amália Rodrigues (em que se diz, todos querem apita no cochicho da menina), ou, com um lado assumidamente político, “Abandono (Fado de Peniche)”, também cantado por Amália, alegadamente referindo-se à fuga de Álvaro Cunha da prisão. De José Afonso muitos poemas foram proibidos, incluindo “Venham mais Cinco”, que esteve na short list para as senhas para a revolução.
O grande veículo de promoção musical no pós-25 de abril era sem dúvida o Festival da Canção. Que, apesar de todas as suas limitações, serviu para mostrar o talento de alguns bons músicos e poetas, como Ary dos Santos, José Niza. José Calvário, Carlos Mendes, Eduardo Nascimento, Madalena Iglésias ou Simone de Oliveira. Curiosamente, no primeiro festival pós-revolução, foi decidido que todas as canções serem interpretadas por um único cantor: Carlos do Carmo. Uma das medidas culturais mais inusitadas e difíceis de explicar.
O desprendimento moral da democracia foi acontecendo aos poucos, começando por ficar abafado pela urgência de intervenção e ideológica. Mas foi a abertura moral de Abril que permitiu, por exemplo, o punk português, com bandas como os Faíscas, os Minas & Armadilhas ou os Xutos & Pontapés, ou fenómenos da música popular, como Quim Barreiros, o virtuoso acordeonista que se transformou num mestre dos trocadilhos brejeiros.
A verdadeira libertação moral e estilística, contudo, deu-se já nos anos 80, com o boom do rock cantado em português, que inclui, por exemplo, fenómenos com a ousadia semiótica e visual de António Variações ou das Doce. Era um novo mundo que se abria. Com toda a naturalidade, o rock português foi lentamente ocupando o espaço dos cantores de intervenção (alguns deles souberam bem reinventar-se), reflexo da sociedade que se foi desenhando no pós 25 de Novembro. A música de intervenção, contudo, nunca desapareceu totalmente, encontrando antes novas formas, como é máximo exemplo o caso do hip-hop, a partir dos anos 90. Abril nunca ficou para trás.
A música de intervenção não é uma consequência do 25 de Abril, mas antes uma das suas causas, ou seja, uma expressão artística de impacto popular que contribuiu para a queda do regime fascista