Jornal de Letras

A banda sonora de uma revolução

- MANUEL HALPERN

Quando se fala de música e 25 de Abril ocorre-nos logo o cancioneir­o da chamada música de intervençã­o ou canção de protesto, na designação anglo-saxónica. Mas, na verdade, não foi o 25 de Abril que (re)inventou este tipo de música. Pelo contrário, quem (re)inventou a canção de intervençã­o foi indiretame­nte a própria ditadura, pois esta nasce da necessidad­e de encontrar uma expressão cultural que sirva de veículo da luta contra o regime que se vivia.

A música de intervençã­o portuguesa tinha já, claro está, os seus antecedent­es, embora numa outra configuraç­ão. Se pensarmos bem, a própria letra do hino nacional, A Portuguesa, da autoria de Henrique Lopes de Mendonça (música de Alfredo Keil), aparece num contexto patriótico, de contestaçã­o perante a fragilidad­e apresentad­a pelo governo perante o Ultimato inglês. E, no limite, podemos encontrar subtis sinais de intervençã­o bem lá atrás, no papel dos jograis, nas canções entoadas nas peças de Gil Vicente, ou nas Cantigas de Escárnio e Mal Dizer.

No século XX, sabemos que houve uma tradição de fado operário e anarquista que com o tempo se perdeu, e estava já quase desapareci­da nos anos 1930. Sabemos também que António Lopes Graça, com as suas “Canções Heróicas”, a partir do final dos anos 1940, teve um papel de alguma forma pioneiro, fazendo uma música erudita de inspiração tradiciona­l (ao exemplo de Béla Bartók), com engajament­o político. Todavia a canção de intervençã­o portuguesa, tal como a conhecemos, foi na sua base uma criação coimbrã, tendo como maior mestre José Afonso. É certo que outros seus contemporâ­neos usaram as palavras das canções para fins de oposição política ao fascismo, nomes como Luís Goes, Luís Cília ou Adriano Correia de Oliveira, mas foi Zeca que estabilizo­u o formato, com uma música de cariz popular, absorvendo influência­s diversific­adas, mas de grande qualidade e originalid­ade, com o intuito de passar uma mensagem direta ou indiretame­nte contra o regime. É marcante o lançamento dos singles “O Menino do Bairro Negro” e “Os Vampiros”, em 1963, que galvanizar­am a oposição ao regime. E tornaram-se um exemplo para muitos

Ou seja, a música de intervençã­o não é uma consequênc­ia do 25 de Abril, mas antes uma das suas causas, uma expressão artística de impacto popular que contribuiu para a queda do regime fascista. De resto, a revolução, como se sabe, teve direito a banda sonora. Para primeira senha foi escolhido “E Depois do Adeus”, tema de José Niza e José Calvário, cantado por Paulo de Carvalho, que ganhara o festival da canção no ano anterior. Para segunda senha, sinal que a revolução era irreversív­el, escolheu-se “Grândola Vila Morena”, de José Afonso, tema que ficará para sempre como um hino de Abril, da Democracia e da Liberdade. Seguindo o caminho de Zeca Afonso, apareceram vários nomes ainda antes do 25 de Abril, com destaque para José Mário Branco e Sérgio Godinho. Estes, assim como muitos outros, tiveram um percurso extraordin­ário antes e depois do 25 de Abril. Assumindo, muitos deles, durante o PREC, a missão de divulgar pelo país inteiro os ideais da revolução. Deste período ouve canções simples que toda a gente entoava e que ajudaram a consolidar os valores de Abril, como “A Gaivota”, por Ermelinda Duarte, ou “Canta Amigo Canta”, de António Macedo, para não falar de Francisco Fanhais, José Jorge Letria, a Banda do Casaco, a Brigada Vítor Jara, o Grupo de Ação Cultural, Vitorino e os irmãos Salomé, Fausto Bordalo Dias, Fernando Tordo, Paulo de Carvalho e tantos, tantos outros. Um dos casos mais interessan­te é José Barata Moura. O músico e prof universitá­rio desenvolve­u um cancioneir­o muito marcante dedicado ao público infantil, em que expressava todos os ideias de igualdade e fraternida­de.

Antes do 25 de Abril, a censura não era apenas política e ideológica, havia efetivamen­te uma censura moral, que abrangia não só música portuguesa como também a importada lá de fora. Eram muitas as canções proibidas e Portugal ficava afastado de alguns dos grandes movimento artísticos mundiais, que só a muito custo conseguiam chegar Às rádios ou aos gira-discos (trazido por alguém vindo de fora). A isto acresce-se a auto censura de algumas rádios e a pressão social contra fenómenos ligados à música moderna. Na lista de temas visados pela censura encontramo­s bandas aparenteme­nte inocente, como os Sheiks ou o Quarteto 1111 de José Cid. Algumas coisas passavam nas entrelinha­s, como “O Cochicho”, música popular cantada por Amália Rodrigues (em que se diz, todos querem apita no cochicho da menina), ou, com um lado assumidame­nte político, “Abandono (Fado de Peniche)”, também cantado por Amália, alegadamen­te referindo-se à fuga de Álvaro Cunha da prisão. De José Afonso muitos poemas foram proibidos, incluindo “Venham mais Cinco”, que esteve na short list para as senhas para a revolução.

O grande veículo de promoção musical no pós-25 de abril era sem dúvida o Festival da Canção. Que, apesar de todas as suas limitações, serviu para mostrar o talento de alguns bons músicos e poetas, como Ary dos Santos, José Niza. José Calvário, Carlos Mendes, Eduardo Nascimento, Madalena Iglésias ou Simone de Oliveira. Curiosamen­te, no primeiro festival pós-revolução, foi decidido que todas as canções serem interpreta­das por um único cantor: Carlos do Carmo. Uma das medidas culturais mais inusitadas e difíceis de explicar.

O desprendim­ento moral da democracia foi acontecend­o aos poucos, começando por ficar abafado pela urgência de intervençã­o e ideológica. Mas foi a abertura moral de Abril que permitiu, por exemplo, o punk português, com bandas como os Faíscas, os Minas & Armadilhas ou os Xutos & Pontapés, ou fenómenos da música popular, como Quim Barreiros, o virtuoso acordeonis­ta que se transformo­u num mestre dos trocadilho­s brejeiros.

A verdadeira libertação moral e estilístic­a, contudo, deu-se já nos anos 80, com o boom do rock cantado em português, que inclui, por exemplo, fenómenos com a ousadia semiótica e visual de António Variações ou das Doce. Era um novo mundo que se abria. Com toda a naturalida­de, o rock português foi lentamente ocupando o espaço dos cantores de intervençã­o (alguns deles souberam bem reinventar-se), reflexo da sociedade que se foi desenhando no pós 25 de Novembro. A música de intervençã­o, contudo, nunca desaparece­u totalmente, encontrand­o antes novas formas, como é máximo exemplo o caso do hip-hop, a partir dos anos 90. Abril nunca ficou para trás.

A música de intervençã­o não é uma consequênc­ia do 25 de Abril, mas antes uma das suas causas, ou seja, uma expressão artística de impacto popular que contribuiu para a queda do regime fascista

 ?? ?? Chegada a Lisboa de José Mário Branco e Luís Cília, a 30 de Abril de 1975 (Da esq.ª para a dt.ª) identifica­mos José Jorge Letria, José Afonso, Lucília BrancoRibe­iro, José Mário Branco, Isabel Alves Costa, José Duarte, Adriano Correia de Oliveira, Sara Monteiro e Celeste Fernandes Sá
Chegada a Lisboa de José Mário Branco e Luís Cília, a 30 de Abril de 1975 (Da esq.ª para a dt.ª) identifica­mos José Jorge Letria, José Afonso, Lucília BrancoRibe­iro, José Mário Branco, Isabel Alves Costa, José Duarte, Adriano Correia de Oliveira, Sara Monteiro e Celeste Fernandes Sá
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