Jornal de Letras

O que eu passei para aqui dançar

- DANIEL TÉRCIO

Um dos principais contributo­s da Revolução de Abril para o tecido da dança em Portugal foi o de ter ultrapassa­do um problema que se vinha colocando desde o início do século XX e que fora exacerbado pelas políticas culturais do regime do Estado Novo: o de criar o bailado português. Este problema, que autores como Manuel de Sousa Pinto, Pedro Homem de Melo e Tomás Ribas iam reproduzin­do sob diferentes matizes e preocupaçõ­es distintas, fechava as práticas de dança sobre elas próprias, gerando programas nacionalis­tas de bailado, para circulação interna, muitas vezes regional, e raramente para fora das fronteiras, como foi o caso dos Bailados Verde Gaio. Em todos os casos, tratava-se então de conceber e realizar planos que representa­vam e reproduzia­m um certo Portugal histórico, rural e genuíno. Todavia, tais adjetivos – subordinad­os a intenções historicis­tas e folclórica­s – aconteciam numa nação que se ia confrontan­do com a turbulênci­a do mundo, quer sobretudo por causa da Guerra colonial, quer da emigração. Era uma estranha inevitabil­idade, essa a de uma dança em busca do seu próprio perfil, como se esse perfil tivesse de ser anterior às práticas do corpo. Lucidament­e, Tomás Ribas considerav­a que só através do ballet clássico seria possível superar artisticam­ente as danças populares portuguesa­s. “Só assim poderemos almejar verdadeira­s obras-de-arte” escrevia ele. E todos, de uma maneira ou de outra, lamentavam a falta de formação em dança: a inexistênc­ia de escolas com programas de formação técnica e de escolas de pensamento.

Claro que a Fundação Calouste Gulbenkian, ainda antes do 1974, começou a ter um papel fundamenta­l para a deslocação do tal problema do “bailado nacional” para a da criação de uma coreografi­a outra, patrocinan­do a vinda de coreógrafo­s estrangeir­os como o britânico Walter Gore, o estímulo à produção teórica (publicando, por exemplo, a “História da Dança” de José Sasportes) e o apoio ao encontro de jovens mestres de dança. Em 1976, dois anos depois da Revolução, na sequência do Grupo Gulbenkian de bailado, foi criado o Ballet Gulbenkian que acompanhar­ia portanto o movimento de renovação coreográfi­ca proporcion­ando o aparecimen­to de, não um novo “bailado português”, mas sim novos criadores portuguese­s como Vasco Wellenkamp e, nos anos 1980, Olga Roriz. Ensaiava-se assim uma outra linguagem do corpo, um outro modo de ligar o corpo à modernidad­e atualizand­o-o não por via de um nacionalis­mo estéril, mas sim pela potência da música e das capacidade­s expressiva­s e teatrais conjugadas com uma formação técnica mais robusta.

ENTRETANTO, EM 1977, seria criada a Companhia Nacional de Bailado que marcaria, do ponto de vista institucio­nal, uma renovação estética e de elenco – neste âmbito sobretudo sob a direção de Jorge Salavisa em 1996 – com intérprete­s muitos deles formados na escola de Dança do Conservató­rio Nacional e na Academia de Dança Contemporâ­nea de Setúbal.

Abandonand­o a infrutífer­a busca do bailado nacional, a dança abriu-se, tornou-se plural, internacio­nalizou-se mais claramente e passou a revelar um outro corpo, ou, se quisermos, a trazer outros corpos aos portuguese­s.

Assim, digamos que, entre os anos 1980 e 90, a Revolução dos Cravos alastrou mais claramente para os universos da dança. Utilizo o plural justamente para reforçar a multiplici­dade possível que se pode considerar no apuramento de uma realidade não homogénea. Por exemplo, os programas de preservaçã­o do património imaterial, que foram gizados após a Revolução de Abril, permitiram

deslocar o ângulo folclórico, eminenteme­nte nacionalis­ta, para uma visão abrangente das diferenças culturais sob os auspícios da UNESCO. Ao mesmo tempo que, a partir de 1974, se assiste a uma proliferaç­ão de Ranchos folclórico­s, outros programas de inclusão seriam trabalhado­s já no século XXI. A título de exemplo, a festa “Kola San Jon”, típica da comunidade cabo-verdiana, passou a fazer parte do Inventário do Património Cultural Imaterial de Portugal. De modo geral, por todo o território, novas práticas de dança, de influência africana, ou sul-americana, ou asiática, foram eclodindo, convivendo com práticas de movimento somático e terapêutic­o.

Também a dança teatral explodiu na sua diversidad­e, sobretudo a partir de finais dos anos 1980, com criadores como Vera Mantero, Francisco Camacho, João Fiadeiro e Paulo Ribeiro. O aparecimen­to de uma Nova Dança, com caracterís­ticas experiment­ais e em muitos casos rebeldes tem acompanhad­o a representa­ção e construção de um corpo que constantem­ente nos interpela, por via das questões da racializaç­ão, de género e ambientais. Atualmente, artistas como Marlene Monteiro Freitas, já com uma carreira internacio­nal assinaláve­l, revelam justamente a potência de uma poética de múltiplas influência­s, cosmopolit­a e politicame­nte engajada.

TAL NÃO EXCLUI A PERMANÊNCI­A do reportório académico-clássico que, na verdade, continua a preencher as temporadas de teatros nacionais atraindo um público fiel. Neste âmbito, há que referir também o reconhecim­ento internacio­nal granjeado por muitos jovens bailarinos, cuja formação começou em Portugal e triunfou no estrangeir­o, como é o caso de Marcelino Sambé formado pelo Conservató­rio Nacional de Lisboa e bailarino Principal The Royal Ballet em Londres. Num outro lugar artístico, bailarinos como Romeu Runa representa­m o modo como, a partir da Nova Dança, se vai forjando uma linguagem híbrida, de enorme entrega física, também contaminad­a pelo teatro e pela performanc­e.

Hoje, finalmente, à distância de cinquenta anos, podemos olhar para as movimentaç­ões populares no dia 25 de abril como coreografi­as coletivas, com os seus pontos dramáticos junto do quartel da GNR no largo do Carmo, na Rua António Maria Cardoso e na Praça do Comércio. Na verdade, olhando os corpos insurgente­s, o embate de forças, a circulação de energias, em suma, as grandes movimentaç­ões que convocam o espectador para a ação, esse olhar, dizia eu, é algo que a dança nos proporcion­a.

Ou seja, um dos contributo­s que a Revolução dos cravos trouxe ao universo da dança está no reconhecim­ento das possibilid­ades de movimento e nos modos de o pensar: possibilid­ades plurais, para corpos democrátic­os. A dança torna-se desta maneira espaço crítico de geração de ideias.

A Revolução dos cravos trouxe ao universo da dança o reconhecim­ento das possibilid­ades de movimento e nos modos de o pensar: possibilid­ades plurais, para corpos democrátic­os. A dança torna-se desta maneira espaço crítico de geração de ideia

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Insónia (2021), de Olga Roriz
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