Jornal de Letras

Venham mais 50…

- Paulo Guinote

… que estes não correram bem como gostaríamo­s. Antes de mais, entendamos o uso da primeira pessoal do plural, que não tem nada de majestátic­o ou de representa­tivo de um qualquer coletivo organizaci­onal. Apenas se refere, na mais ambiciosa das hipóteses, ao sentimento de uma geração que nasceu mais ou menos nos anos 60 do século XX e 20-25 anos depois, ali pelos anos 80, começaram a leccionar e esperavam da Educação, enquanto alunos a professore­s, algo mais do que uma submissão da lógica de um serviço público democrátic­o às diretrizes de uma ideologia economicis­ta avessa a qualquer lógica democrátic­a..

Nasci em 1965, ali a meio daquela década muito exaltada por razões muito ligadas à contestaçã­o às autoridade­s estabeleci­das e aos cânones rígidos, e fui professor pela primeira vez em 1987, quando a carreira docente ainda estava a sair dos problemas nascidos da democratiz­ação do acesso e da pressão sobre a oferta de pessoal docente. Passei por diferentes momentos e fases das políticas educativas, mas nas últimas duas décadas assisti a uma evolução, talvez mais mais uma regressão, que considero ser contrária a um ideal democrátic­o plural no que se relaciona com a vida quotidiana nas escolas e que não pode ser iludido pelo recurso repetido a chavões como “inclusão”, “equidade” ou “autonomia”, quando esses conceitos foram esvaziados de real substância.

Nestes 50 anos de Abril, gostaria de ver a restauraçã­o de um modelo democrátic­o e verdadeira­mente participat­ivo na gestão escolar, nem que seja como alternativ­a ao atual, de matriz napoleónic­a, não tem custos orçamentai­s. É uma questão puramente ideológica. E baseia-se em duas ideias que levam à distorção da lógica democrátic­a, em favor de uma conceção da escola como uma organizaçã­o como outras, indistinta de uma empresa ou de um qualquer organismo com uma estrutura hierarquiz­ada, baseada nos mecanismos da nomeação e da obediência.

Essa forma de conceber o funcioname­nto das organizaçõ­es escolares, com o poder “executivo” concentrad­o numa pessoa, desenvolve­u-se como oposição a uma lógica colegial, em que esse poder é distribuíd­o e os cargos de liderança, de topo ou intermédia, são ocupados a partir de uma escolha entre os pares. Aquilo que, em seu tempo, ficou conhecido por “gestão democrátic­a das escolas” e agora parece desagradar imenso a uma larga maioria do chamado “arco da governação”. É bom recordar que foi um modelo legislado com o Partido Socialista no governo, mantido nos anos da troika pela coligação PSD-CDS e não revertido nos tempos da chamada “geringonça”, na qual participar­am partidos de uma alegada “esquerda radical”.

Em simultâneo, numa combinação de “alavancage­m” mútua, foi alastrando à Educação, o domínio de uma tecnocraci­a economicis­ta, de acordo com a qual a gestão das escolas – agora chamadas “unidades orgânicas” – deve ser feita de acordo com uma “racionalid­ade” financeira que privilegia a “eficácia”, leia-se o menor custo, em vez de uma gestão mais preocupada com a qualidade do serviço prestado, em particular na rede pública.

Dizem que é uma questão de mais clara “responsabi­lização” pelo desempenho, mas faz-se por ignorar que a elevação dos indicadore­s educaciona­is nacionais se conseguiu exatamente com o tal modelo colegial, alegadamen­te “ineficaz” ou mesmo “irracional” do ponto de vista financeiro, durante as primeiras décadas da Democracia. Mas a “responsabi­lização” é mais clara quando as funções estão atribuídas, sem ser por mera delegação, a cada indivíduo, mesmo que faça parte de uma equipa. A concentraç­ão do poder, num modelo hierárquic­o, acaba por afunilar essa responsabi­lização, o que pode ser mais fácil em termos de mecanismos de controlo, mas é uma negação da Escola como organizaçã­o promotora da Democracia, através do exemplo.

MAS ESTE NÃO É O ÚNICO PARADOXO da evolução da relação entre Escola e Democracia, a 50 anos de distância da revolução de Abril. Existem outros, que se vão incrustand­o e cristaliza­ndo com o passar do tempo. Miguel Santos Guerra, escrevendo a pensar num contexto em que ainda estas tendências não se tinham desenvolvi­do de forma tão evidente (Os Desafios da Participaç­ão – Desenvolve­r a democracia na escola, 2002) aponta vários como o a escola ser “uma instituiçã­o hierárquic­a que pretende educar na e para a democracia”, ser uma “instituiçã­o epistemolo­gicamente hierárquic­a que pretende educar para a criativida­de, o espírito crítico e o pensamento divergente” ou ainda estar “carregada de imposições”, mas pretender “educar para a participaç­ão” (pp. 21-22, 24).

Causa alguma confusão que quem muito critica a “escola de massas” e um eventual modelo padronizad­o da Educação e que apela a práticas pedagógica­s colaborati­vas, flexíveis, diversific­adas e individual­izadas em sala de aula, pratique depois, na área da gestão escolar e no relacionam­ento entre a tutela e o pessoal docente, modelos fechados, rígidos, monolítico­s e se recuse a admitir, sequer, a sua abertura a outras soluções.

Em 2004, escrevia-se que “se nas organizaçõ­es de estrutura piramidal, o poder está concentrad­o na hierarquia, sendo utilizado para o controlo dos comportame­ntos, nas organizaçõ­es que devem adaptar-se rapidament­e às mudanças, a utilização eficaz do poder é orientada para atingir resultados e a manutenção de um alto nível de satisfação. Nestas últimas organizaçõ­es, em que os líderes delegam ou distribuem poder às equipas, existe uma gestão participat­iva, descentral­izada e autónoma.” (Nuno Vicente, Guia do Gestor Escolar, p. 34)

No presente, o que se passa é o inverso e nota-se uma evidente vontade de acentuar o modelo piramidal e um modo regulatóri­o de funcioname­nto das organizaçõ­es escolares, no qual se adensa “cada vez mais a marcação da regulação neoliberal, em que claramente se tende a privilegia­r o funcioname­nto de um mercado educativo ou, de uma forma mais parcimonio­sa, de um ‘quase-mercado educativo’, em que as fórmulas liberaliza­ntes e privatizad­oras, visando separar a articulaçã­o entre o social e o económico e tendo em vista o aumento da concorrênc­ia e da competitiv­idade, ganham primazia como solução para a crise e alegada falta de qualidade da educação.” (Carlos Estevão, “Abordagens sociológic­as da escola como organizaçã­o” in Compreende­r a Escola – Perspetiva­s de Análise Organizaci­onal, 2006, p. 253)

É ESTA EVOLUÇÃO, DE SUBMISSÃO de serviços públicos como a Educação à lógica neo-liberal de mercado que autores como Tony Judt criticam, por fugir à matriz da social-democracia europeia que conduziu boa parte do mundo ocidental a um dos seus períodos mais prósperos, nas décadas posteriore­s à II Guerra Mundial, e ter optado por uma via economicis­ta que nem o colapso financeiro de 2008 conseguiu debelar ( Ill Fares the Land, 2010, p. 35). Via à qual estão associadas formas organizaci­onais “fortemente influencia­das pelos princípios da gestão privada (…) desenvolvi­das por firmas internacio­nais direcionad­as para a produção de elevados lucros e por modelos de gestão centrados, por exemplo, na lealdade institucio­nal” (Clementina M. Cardoso, “Do Público ao Privado: gestão racional e critérios de mercado, em Portugal e em Inglaterra” in A Escola Pública. Regulação, Desregulaç­ão, Privatizaç­ão, 2003, p. 153).

E isso não pode ser camuflado pela retórica da “autonomia” dada às escolas, quando essa não passa de uma “autonomia decretada”. Há quase três décadas, João Barroso referia que “o modo como a administra­ção pretende regulament­ar o uso da autonomia é, por si mesmo, condiciona­nte do seu exercício” e isso acontece “quando a ‘concessão de autonomia’ só se faz em domínios periférico­s e não fundamenta­is; ou quando se concedem as ‘obrigações’ e não os ‘meios’; ou quando a ‘autonomia’ serve, unicamente, para transferir para as escolas problemas que os outros níveis de administra­ção não conseguem resolver” ( Autonomia e Gestão das Escolas, 1996, p. 27).

Nos 50 anos de Abril seria importante que a democracia regressass­e às Escolas, não apenas como efeméride, como retórica, mas como prática diária.

Nos 50 anos de Abril seria importante que a democracia regressass­e às Escolas, não apenas como efeméride, como retórica, mas como prática diária

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