Venham mais 50…
… que estes não correram bem como gostaríamos. Antes de mais, entendamos o uso da primeira pessoal do plural, que não tem nada de majestático ou de representativo de um qualquer coletivo organizacional. Apenas se refere, na mais ambiciosa das hipóteses, ao sentimento de uma geração que nasceu mais ou menos nos anos 60 do século XX e 20-25 anos depois, ali pelos anos 80, começaram a leccionar e esperavam da Educação, enquanto alunos a professores, algo mais do que uma submissão da lógica de um serviço público democrático às diretrizes de uma ideologia economicista avessa a qualquer lógica democrática..
Nasci em 1965, ali a meio daquela década muito exaltada por razões muito ligadas à contestação às autoridades estabelecidas e aos cânones rígidos, e fui professor pela primeira vez em 1987, quando a carreira docente ainda estava a sair dos problemas nascidos da democratização do acesso e da pressão sobre a oferta de pessoal docente. Passei por diferentes momentos e fases das políticas educativas, mas nas últimas duas décadas assisti a uma evolução, talvez mais mais uma regressão, que considero ser contrária a um ideal democrático plural no que se relaciona com a vida quotidiana nas escolas e que não pode ser iludido pelo recurso repetido a chavões como “inclusão”, “equidade” ou “autonomia”, quando esses conceitos foram esvaziados de real substância.
Nestes 50 anos de Abril, gostaria de ver a restauração de um modelo democrático e verdadeiramente participativo na gestão escolar, nem que seja como alternativa ao atual, de matriz napoleónica, não tem custos orçamentais. É uma questão puramente ideológica. E baseia-se em duas ideias que levam à distorção da lógica democrática, em favor de uma conceção da escola como uma organização como outras, indistinta de uma empresa ou de um qualquer organismo com uma estrutura hierarquizada, baseada nos mecanismos da nomeação e da obediência.
Essa forma de conceber o funcionamento das organizações escolares, com o poder “executivo” concentrado numa pessoa, desenvolveu-se como oposição a uma lógica colegial, em que esse poder é distribuído e os cargos de liderança, de topo ou intermédia, são ocupados a partir de uma escolha entre os pares. Aquilo que, em seu tempo, ficou conhecido por “gestão democrática das escolas” e agora parece desagradar imenso a uma larga maioria do chamado “arco da governação”. É bom recordar que foi um modelo legislado com o Partido Socialista no governo, mantido nos anos da troika pela coligação PSD-CDS e não revertido nos tempos da chamada “geringonça”, na qual participaram partidos de uma alegada “esquerda radical”.
Em simultâneo, numa combinação de “alavancagem” mútua, foi alastrando à Educação, o domínio de uma tecnocracia economicista, de acordo com a qual a gestão das escolas – agora chamadas “unidades orgânicas” – deve ser feita de acordo com uma “racionalidade” financeira que privilegia a “eficácia”, leia-se o menor custo, em vez de uma gestão mais preocupada com a qualidade do serviço prestado, em particular na rede pública.
Dizem que é uma questão de mais clara “responsabilização” pelo desempenho, mas faz-se por ignorar que a elevação dos indicadores educacionais nacionais se conseguiu exatamente com o tal modelo colegial, alegadamente “ineficaz” ou mesmo “irracional” do ponto de vista financeiro, durante as primeiras décadas da Democracia. Mas a “responsabilização” é mais clara quando as funções estão atribuídas, sem ser por mera delegação, a cada indivíduo, mesmo que faça parte de uma equipa. A concentração do poder, num modelo hierárquico, acaba por afunilar essa responsabilização, o que pode ser mais fácil em termos de mecanismos de controlo, mas é uma negação da Escola como organização promotora da Democracia, através do exemplo.
MAS ESTE NÃO É O ÚNICO PARADOXO da evolução da relação entre Escola e Democracia, a 50 anos de distância da revolução de Abril. Existem outros, que se vão incrustando e cristalizando com o passar do tempo. Miguel Santos Guerra, escrevendo a pensar num contexto em que ainda estas tendências não se tinham desenvolvido de forma tão evidente (Os Desafios da Participação – Desenvolver a democracia na escola, 2002) aponta vários como o a escola ser “uma instituição hierárquica que pretende educar na e para a democracia”, ser uma “instituição epistemologicamente hierárquica que pretende educar para a criatividade, o espírito crítico e o pensamento divergente” ou ainda estar “carregada de imposições”, mas pretender “educar para a participação” (pp. 21-22, 24).
Causa alguma confusão que quem muito critica a “escola de massas” e um eventual modelo padronizado da Educação e que apela a práticas pedagógicas colaborativas, flexíveis, diversificadas e individualizadas em sala de aula, pratique depois, na área da gestão escolar e no relacionamento entre a tutela e o pessoal docente, modelos fechados, rígidos, monolíticos e se recuse a admitir, sequer, a sua abertura a outras soluções.
Em 2004, escrevia-se que “se nas organizações de estrutura piramidal, o poder está concentrado na hierarquia, sendo utilizado para o controlo dos comportamentos, nas organizações que devem adaptar-se rapidamente às mudanças, a utilização eficaz do poder é orientada para atingir resultados e a manutenção de um alto nível de satisfação. Nestas últimas organizações, em que os líderes delegam ou distribuem poder às equipas, existe uma gestão participativa, descentralizada e autónoma.” (Nuno Vicente, Guia do Gestor Escolar, p. 34)
No presente, o que se passa é o inverso e nota-se uma evidente vontade de acentuar o modelo piramidal e um modo regulatório de funcionamento das organizações escolares, no qual se adensa “cada vez mais a marcação da regulação neoliberal, em que claramente se tende a privilegiar o funcionamento de um mercado educativo ou, de uma forma mais parcimoniosa, de um ‘quase-mercado educativo’, em que as fórmulas liberalizantes e privatizadoras, visando separar a articulação entre o social e o económico e tendo em vista o aumento da concorrência e da competitividade, ganham primazia como solução para a crise e alegada falta de qualidade da educação.” (Carlos Estevão, “Abordagens sociológicas da escola como organização” in Compreender a Escola – Perspetivas de Análise Organizacional, 2006, p. 253)
É ESTA EVOLUÇÃO, DE SUBMISSÃO de serviços públicos como a Educação à lógica neo-liberal de mercado que autores como Tony Judt criticam, por fugir à matriz da social-democracia europeia que conduziu boa parte do mundo ocidental a um dos seus períodos mais prósperos, nas décadas posteriores à II Guerra Mundial, e ter optado por uma via economicista que nem o colapso financeiro de 2008 conseguiu debelar ( Ill Fares the Land, 2010, p. 35). Via à qual estão associadas formas organizacionais “fortemente influenciadas pelos princípios da gestão privada (…) desenvolvidas por firmas internacionais direcionadas para a produção de elevados lucros e por modelos de gestão centrados, por exemplo, na lealdade institucional” (Clementina M. Cardoso, “Do Público ao Privado: gestão racional e critérios de mercado, em Portugal e em Inglaterra” in A Escola Pública. Regulação, Desregulação, Privatização, 2003, p. 153).
E isso não pode ser camuflado pela retórica da “autonomia” dada às escolas, quando essa não passa de uma “autonomia decretada”. Há quase três décadas, João Barroso referia que “o modo como a administração pretende regulamentar o uso da autonomia é, por si mesmo, condicionante do seu exercício” e isso acontece “quando a ‘concessão de autonomia’ só se faz em domínios periféricos e não fundamentais; ou quando se concedem as ‘obrigações’ e não os ‘meios’; ou quando a ‘autonomia’ serve, unicamente, para transferir para as escolas problemas que os outros níveis de administração não conseguem resolver” ( Autonomia e Gestão das Escolas, 1996, p. 27).
Nos 50 anos de Abril seria importante que a democracia regressasse às Escolas, não apenas como efeméride, como retórica, mas como prática diária.
Nos 50 anos de Abril seria importante que a democracia regressasse às Escolas, não apenas como efeméride, como retórica, mas como prática diária