Do exílio para a Educação
Grande parte da minha formação na área da educação foi feita no exílio, a que, com José Medeiros Ferreira, fui forçada pela ditadura salazarista, em meados dos anos 60 do século passado. Mas logo que o 25 de Abril de 1974 libertou o país, regressamos a Portugal, e aqui procurei dar o meu contributo na definição de políticas públicas de democratização, lá irei.
Lembrando um pouco o percurso que fiz, posso dizer que o meu interesse pela educação começou com uma experiência de um ano numa escola dos EUA, em 1958-59. As diferenças entre esta escola e a escola portuguesa eram tão grandes que me levaram ao questionamento das finalidades da escola, da forma de definir um currículo, da sua duração, do significado de aprender, dos seus modos, contextos, agentes…
A escola americana era então uma escola para todos - para que todos tivessem instrumentos de compreensão do mundo e de ação produtiva e a sociedade beneficiasse desse núcleo comum; a escola portuguesa parecia mais interessada em selecionar uma elite reduzida que ocuparia os cargos de direção e comandaria os outros sem instrumentos e conhecimentos para se defenderem. Daqui decorreriam diferenças grandes designadamente na oferta curricular: nos EUA, um currículo que procurava um equilíbrio entre matérias consideradas necessárias para todos e outras, optativas, de natureza artística e prática, proporcionando um currículo mais motivador e personalizado; na escola portuguesa existiam vias diferentes, que começavam muito cedo e determinavam o futuro profissional de cada um.
No Secundário a grande maioria dos alunos já tinha ficado pelo caminho e os que continuavam podiam escolher a “alínea” conforme os estudos superiores que pretendessem prosseguir mas em cada alínea, todas as matérias eram obrigatórias não havendo a preocupação nem de personalizar o currículo nem de proporcionar uma educação harmonizando várias facetas.
Estas e outras diferenças levaram-me a desejar aprofundar o tema para contribuir para a educação da população portuguesa, então com níveis de escolaridade baixíssimos que ainda hoje prejudicam os seus detentores e o país.
Portugal do início dos anos 60 praticamente não existiam cursos de Sociologia, Psicologia, menos ainda de Ciências da Educação. Recordo-me de, na Faculdade de Letras, encontrar, no Centro Cultural Brasileiro, umas revistas brasileiras de pedagogia que representavam o máximo da modernidade comparadas com as cadeiras de Pedagógicas proporcionadas a quem queria ser professor. Na altura davam-se em Portugal os primeiros passos para se criarem estudos de Psicologia e Sociologia. Em 62 era criado por ordens religiosas o Instituto de Ciências Psicopedagógicas que em 64-65 passaria a Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA). A Fundação C. Gulbenkian iniciava um centro de investigação nestas áreas e o prof. Sedas Nunes conseguia uma difícil autorização para um centro de investigação em Ciências Sociais por volta de 65. Eram esforços incipientes que começavam como centros de estudos para quem já terminara uma formação anterior numa área diferente. Por isso quando saí de Portugal, já licenciada em Letras, para acompanhar José Medeiros Ferreira no seu exílio em Genebra, não hesitei em me inscrever numa nova licenciatura, agora de Ciências da Educação, no Institut de Psychologie et des Sciences de l’Éducation da Universidade de Genebra.
NO FINAL DOS ANOS 60 início dos 70, a Universidade de Genebra beneficiava de uma estrutura sólida, da sua centralidade europeia e do arejamento trazido pelo Maio de 68. Uma combinação imbatível! E muitos dos exilados portugueses, vivendo embora na total incerteza sobre uma eventual possibilidade de regresso e sobretudo sobre a duração do seu afastamento, viam na sua formação uma forma de poderem vir a contribuir para um Portugal democrático mais moderno e europeu. Em quase todas as áreas académicas havia gente com essa consciência e determinação.
Nas suas Memórias Anotadas (Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2017), José Medeiros Ferreira relata a mudança do curso de Filosofia que quase terminara em Portugal para o de História cuja modernidade e qualidade louva:
“Na Faculdade de Letras cursei História Moderna, História Contemporânea (esta com um extraordinário professor Jean-Claude Favez, (…) com quem aprendi a forma profissional e os métodos da História
Contemporânea tão arredados na altura das universidades portuguesas…” (p. 141) Continua a descrição do currículo construído por si indo buscar cadeiras a quatro faculdades diferentes e volta a acentuar a qualidade e modernidade da oferta: “A tentação de aproveitar uma comunidade universitária tão diversificada e, ao mesmo tempo tão propícia à interdisciplinaridade e ao próprio conceito de Universidade (…) Ainda hoje a Universidade de Genebra é a minha ‘Universidade-Mãe’, depois do deserto da Universidade salazarista, parada no tempo no respeitante às Humanidades e às Ciências Sociais, em que a investigação histórica mal chegava ao fim do século XVIII e nem Sociologia havia.” (p. 142)
Relata depois todas as “coisas novas” que Genebra oferecia a quem vinha “do Portugal salazarista” – desde as bibliotecas com acesso direto aos livros, dos filmes não censurados, das discussões livres promovidas nuns “cafés politiques” muito concorridos e participados.
Se assim era com a História, imagine-se o que não seria com as Ciências da Educação, instaladas no edifício da Société des Nations com a Psicologia gerida por Jean Piaget e enriquecida com gente de todo o mundo. Na Pedagogia, que lutava por desenvolver o seu espaço próprio, discutia-se o contributo epistemológico de Piaget (mais do que a sua Psicologia) para a Educação, paralelamente ao envolvimento em trabalhos experimentais (por exemplo, de Psicolinguística) e ao estudo das correntes educativas mais modernas, como a Sociologia da Educação com a denúncia da reprodução social pela escola, primeiro nos EUA pelo Relatório Coleman, depois em França por Bourdieu e Passeron, no Reino Unido na busca de fatores culturais dessa reprodução por Bernstein ou na Itália com os rapazes de Barbiana acusando a própria escola de reforçar as desigualdades.
PARALELAMENTE DEFENDIA-SE A APRENDIZAGEM por prazer e a liberdade de aprender com Summerhill, a aprendizagem em contextos informais com Illich ou as metodologias ativas inspiradas em Freinet…Estudávamos experiências no terreno como a possibilidade de reduzir o insucesso escolar das crianças imigrantes espanholas, o desenvolvimento da alfabetização segundo Paulo Freire ou ainda a promoção da leitura através da colaboração entre instituições escolares, bibliotecárias e teatrais… Estudávamos também o processo de unificação do ensino básico que a Suíça já implementara e mudanças revolucionárias da escola noutros continentes.
Mas Genebra não deu só uma formação académica aos seus asilados através da Universidade. Transmitiu uma postura política de cidadania em que o Estado respeita o cidadão e este assume as suas responsabilidades antes de as procurar noutros ou no Estado.
Talvez por isso a minha ação educativa em Portugal, a que regressei logo que possível, após o 25 de Abril claro, se desenvolveu em dois eixos: o da contribuição para a definição de políticas públicas de democratização, como disse, através do Ministério da Educação e de instituições de formação de professores; e o eixo da auscultação dos cidadãos e divulgação junto destes das orientações e medidas que os governos iam tomando – através de programas de rádio e de televisão, de jornais (como a Página de Educação do Diário de Notícias), de revistas impressas e digitais (como a Inovação ea Noesis do Instituto de Inovação Educacional). Os programas de tv abrangeram debates entre partidos políticos sobre as medidas para a educação contidas nos seus programas eleitorais, apresentação de medidas e experiencias através do programa “Falar Educação”, divulgação e explicação de experiencias de trabalho de projeto e de intervenção no meio na área da Formação Cívica Politécnica (“Cá fora também se aprende” com vários outros amigos igualmente “estrangeirados”) e programas realizados na RTP e dirigidos a crianças. Mais tarde, no Conselho Nacional de Educação encontrei um organismo vocacionado para auscultar os parceiros sociais e construir consensos.
Do exílio retiramos aprendizagens académicas e profissionais, um sentido de cidadania mais apurado, a capacidade de enfrentar a incerteza e de compreender melhor a dureza de uma vida sem redes sociais e de cultivar solidariedade e fraternidade.
Do exílio retiramos aprendizagens académicas e profissionais, um sentido de cidadania mais apurado, a capacidade de compreender melhor a dureza de uma vida de cultivar solidariedade e fraternidade