LUÍS MOITA
O espaço virtual é hoje um campo de ação diplomática.
Luís Moita é um dos coordenadores do Estudo da Estrutura Diplomática Portuguesa, elaborado pelo OBSERVARE, o Observatório de Relações Exteriores da Universidade Autónoma, recentemente apresentado. Esta investigação, que incluiu um inquérito feito aos embaixadores espalhados pelo mundo, fez um raio-X à rede diplomática e propõe alguns caminhos para que esta se adeque aos “novos tempos”. Entre as medidas sugeridas estão a redução de 20 embaixadas, sobretudo na Europa, o reforço da representação na Ásia e África, a redefinição das funções diplomáticas e a criação de embaixadores itinerantes temáticos e de embaixadas radiais.
Qual era o grande objetivo deste estudo?
Ambicionámos avaliar toda a malha da rede diplomática portuguesa e concluir se era possível racionalizá-la e melhorá-la de acordo com as transições do mundo contemporâneo. Era este o objetivo. No OBSERVARE (Observatório de Relações Exteriores da Universidade Autónoma) criámos um grupo de investigação que se dedicou a este tema. Foi feito um inquérito aos diplomatas que lhes foi enviado pelo Instituto Diplomático e a que eles responderam abrindo um “link” que dava para um Google Forms, uma modalidade da internet. Só nós é que conhecíamos as respostas. Era absolutamente anónimo e com confidencialidade inteiramente assegurada.
Foram enviados inquéritos aos 400 diplomatas, mas só 109 responderam. Como é que interpreta isso?
É uma percentagem muito boa de respostas. Qualquer inquérito funciona por amostra. Muito raramente se consegue ter a resposta do universo do campo que está a observar. O facto de mais de um quarto responder é bom do ponto de vista científico porque valida os resultados. Porque não responderam mais? Pode haver muitas circunstâncias. Alguns diplomatas não terão recebido o inquérito, outros não deram importância... Pode haver muitos motivos.
O corpo diplomático está desatualizado em relação aos problemas dos “novos tempos” referidos no estudo?
É difícil responder. Há uma certa contradição. O corpo diplomático português é uma elite muito qualificada. São pessoas com uma grande preparação, de elevada cultura, com uma experiência internacional notabilíssima e, no entanto, também sofrem do polo negativo desta categorização. Ou seja, é uma elite um pouco fechada, muito tradicional, com muitas etiquetas protocolares a respeitar. E os tempos estão a mudar do ponto de vista da própria conceção de embaixada.
Essa conceção de embaixada tem de ser revista?
Sim. Tradicionalmente, a embaixada é uma representação territorializada de um Estado perante outro Estado. Mas hoje desvalorizou-se a função de relação bilateral das embaixadas tradicionais. O caso da Europa é paradigmático. Os diplomatas estão constantemente em contacto entre si em plataformas internacionais que desvalorizam necessariamente a relação bilateral a favor de outro tipo de encontro e de estruturas. Alguns embaixadores que entrevistámos diziam-nos que uma boa parte das embaixadas bilaterais que temos nos países-membros [da União Europeia] têm hoje funções meramente protocolares. Ou então temos outros casos, como na América Latina, onde há um embaixador isolado que às vezes nem sequer secretária tem, nem motorista, com poucas condições de dignidade para o exercício da sua função de soberania. Portanto, há lugar para nos interrogarmos se faz sentido manter aquela embaixada com funções quase só protocolares. No estudo, atrevemo-nos a uma coisa ousada, controversa, que é admitir a possibilidade de eliminar algumas das embaixadas bilaterais e substituí-las pelo que chamamos de “embaixadas radiais”.
Como funcionariam essas embaixadas?
Seriam de âmbito regional. Teriam à frente delas uma equipa diplomática dotada de grande mobilidade e com grande conectividade com as sociedades onde vai representar o país. Esta possibilidade foi sugerida por um embaixador que entrevistámos e que admitiu a hipótese de Portugal ter uma grande embaixada em Estocolmo que abrangesse todo o espaço da Escandinávia e Países Bálticos.
Muitas das sugestões dadas no estudo são “inputs” que foram recebendo dos próprios embaixadores?
Sim. Mas também recorremos a sugestões de estudos comparativos que fizemos com experiências estrangeiras. Por exemplo, a Dinamarca tem um embaixador temático para as questões tecnológicas sediado em Silicon Valley. Não está sediado na capital, nem é uma embaixada convencional. É um embaixador especialista em questões tecnológicas que está destacado para onde florescem as
Há descontentamento [nos diplomatas]. Muitas vezes têm de trabalhar com falta de meios, de pessoal, de recursos técnicos. A situação não é brilhante.
questões tecnológicas – Silicon Valley. Sugestões deste género estimularam a nossa imaginação. Apanhámos vários textos de especialistas que apontam para a regionalização das embaixadas.
Isso pode ser uma tendência?
Não é certo, porque tem muitos problemas. A hipótese é muito controversa. Muitos embaixadores com experiência diplomática dizem que isso não faz sentido porque nada substitui a presença pessoal, a relação direta com o governo em que estamos representados, com a sociedade onde estamos inseridos. Há muitos argumentos favoráveis à manutenção das embaixadas bilaterais convencionais. Não ignoramos esses argumentos e achamos que são respeitáveis, até porque em numerosos estados há suscetibilidades, que têm de ser atendidas, de não aceitarem ser representados por embaixadas sediadas em estados vizinhos. Isso acontece no caso português. Portugal não aceita um embaixador estrangeiro que não tenha cá residência, que apresente credenciais ao Estado português e que depois vá viver em Madrid. Não aceita. Porquê? Com receio de ser desvalorizado no contexto ibérico e ser confundido com Espanha. Quem sabe se outros Estados têm sensibilidades idênticas? Por isso, alertamos para todas estas dificuldades. Mas esta “regionalização” já acontece. Em Camberra, na Austrália, o embaixador português tem credenciais apresentadas em 10 ou 12 micro Estados ali no Pacífico e arredores. Em Caracas, na Venezuela, o embaixador tem a representação naquelas ilhazinhas e arquipélagos no Caribe. Era só uma questão de transformar essa realidade numa conceção nova de embaixada, que obrigaria a uma nova cultura organizacional, novos métodos de trabalho, maior participação e, às vezes, a uma “task force”.
A máquina diplomática portuguesa é demasiado pesada?
Demasiado pesada ou demasiado leve porque às vezes perde a sua eficácia, apesar de o corpo diplomático português estar muito prestigiado a nível internacional. Portugal é considerado um país fiável. Isso é muito importante do ponto de vista da imagem externa de um país. É, para além disso, um país que se bate por causas, que é fiel aos seus compromissos e que tem uma perspetiva não imperial da sua presença. Não é um país de ambição territorial ou de outra natureza que seja sentida como ameaça.
E também por isso têm sido escolhidos alguns portugueses para cargos de relevo a nível internacional.
Com grande influência da máquina diplomática portuguesa. Isso foi claríssimo na escolha de António Guterres para secretário-geral da ONU e também mais recentemente de António Vitorino para diretor- -geral da Organização Internacional para as Migrações. Mas não só. Portugal tem sido eleito como membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU, às vezes rivalizando com países como a Suécia. É preferido porque é um pequeno país com poucos interesses do ponto de vista de manobras menos claras da vida internacional.
Mas, em relação à tal necessidade de adequação da máquina diplomática aos “novos tempos”, que sugestões apontam?
Uma sugestão que avançamos são os embaixadores itinerantes temáticos. Já houve três casos no passado. Houve um embaixador para as questões de língua portuguesa, o Dr. José Fernandes Fafe. Houve um embaixador para os assuntos do petróleo, o engenheiro Pires de Miranda, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros num dos governos de Sá Carneiro. E que, depois de ter tido essa função no governo, tornou-se embaixador itinerante para o petróleo. E há o caso do major Vítor Alves, que era um dos militares de Abril, que foi nomeado embaixador junto das comunidades portuguesas. Achamos que os tempos atuais aconselham que se intensifique essa prática, à semelhança do que acontece em Espanha e França. Sugerimos que Portugal adote esses embaixadores temáticos para as questões energéticas, para as alterações ambientais, para a cibersegurança, para as questões migratórias, enfim, inventariamos uma meia dúzia de hipóteses.
Essas pessoas poderiam vir de fora da carreira diplomática?
Hipoteticamente. Claro que uma solução dessas desagrada aos diplomatas. São contrários a que pessoas de fora da carreira tenham o papel de embaixador. Mas a opinião pública é favorável à designação destes embaixadores temáticos, escolhidos fora da carreira diplomática, de acordo com uma sondagem que incluímos no estudo, que encomendámos à Aximage.
Mas não responderiam aos embaixadores colocados nos países?
Não. Pressupõe-se que sejam grandes especialistas na área, com grande tecnicidade, que dominem os assuntos. Não estão vinculados a um território, mas a um tema.
Estariam ao serviço de uma missão especial do Estado português, é isso?
Sim. Com caráter eventualmente pontual, mas também permanente. Pode ser das duas formas.
Esses embaixadores temáticos poderiam ser, por exemplo, cientistas?
Sem dúvida. Já que fala em cientistas, uma das hipóteses que sugerimos no estudo e que nos parece bastante sugestiva é a possibilidade de haver representações do Estado português não só na forma de embaixadas tradicionais, mas também sob uma forma diferente, a que damos a designação de Casas de Portugal. Vou dar um exemplo. Em Macau, há o Instituto Português do Oriente, que é resultante de uma parceria bastante importante entre o Instituto Camões, organismo do Estado dependente do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e a Fundação do Oriente. Usando uma expressão algo desprestigiada, resulta de uma parceria público-privada. É um núcleo importante da presença de Portugal e está localizado numa zona estratégica para o nosso país designada como o Delta do Rio das Pérolas, que é uma expressão consagrada em Relações Internacionais. É aquela grande região que abrange Hong Kong, Macau, algumas cidades chinesas importantes, que é um ponto fulcral
Os conflitos são inevitáveis. Ou se resolvem a bem e temos a diplomacia, ou dão para o torto e temos a guerra. Isto quase resumia as relações internacionais do passado. Já não faz sentido.