Jornal de Negócios

Será um conflito entre os EUA e a China inevitável?

- RICARDO EVANGELIST­A Analista Sénior da ActivTrade­s

Tucídides foi um dos maiores historiado­res da Grécia Antiga, tendo escrito um tratado de oito volumes, intitulado “História da Guerra do Peloponeso”, que dá conta do conflito entre Atenas e Esparta no século V a.C. De forma resumida, Esparta, potência dominante da época, sentiu-se ameaçada pela ascensão de Atenas, o que levou a um crescente desacordo que derivou numa guerra total, da qual acabaram por sair vitoriosos os espartanos.

Mais recentemen­te, em 2018, Graham T. Allison, cientista político e professor em Harvard, publicou o livro “Destinados à Guerra”, no qual cunhou a expressão “armadilha de Tucídides”, referindo-se à teoria de que, quando o poder estabeleci­do é ameaçado por um poder emergente, uma guerra é quase sempre inevitável. O autor examinou os últimos 500 anos e deparou-se com 16 casos que se enquadram nesta descrição, sendo que apenas três não resultaram em guerra. A ascensão da Alemanha no final do século XIX e início do século XX, que desafiou a supremacia do Reino Unido à data e deu origem à I Guerra Mundial, é um dos exemplos ilustrativ­os. Curiosamen­te, nestes cenários, o conflito armado tende a ser desencadea­do por um país terceiro (como aconteceu na I Guerra Mundial).

Na era contemporâ­nea, os Estados Unidos da América são, indiscutiv­elmente, o poder estabeleci­do e a China o futuro rival. Os últimos cem anos foram, em diversos sentidos, o século americano, durante o qual os EUA se assumiram como o principal arquiteto e guardião da ordem internacio­nal. O impacto da ascensão da China é visto por muitos nos EUA como uma afronta a essa hegemonia.

Em 1948, nove em cada 10 cidadãos chineses viviam em extrema pobreza. O ponto de viragem deu-se sob a liderança de Mao Zedong. A partir daí, a China iniciou uma marcha que a conduziu até onde se encontra hoje. Em 2020, mais de 99% da população do país vive acima do limiar da privação, o que se afigura, certamente, como uma das maiores conquistas alguma vez alcançada em termos de governação. No entanto, os planos de progresso do gigante asiático ainda não chegaram ao fim. Até 2035, Pequim pretende ser líder em todas as tecnologia­s e, até 2049, ambiciona ser a potência dominante à escala global em todas as esferas, inclusive militar. Neste sentido, compreende-se bem o porquê de Washington encarar esta postura como um ataque à posição de preponderâ­ncia, por excelência, americana.

A questão sino-americana é talvez o desafio mais importante dos nossos tempos. Irá esta “armadilha de Tucídides” terminar num conflito armado ou, à semelhança da Guerra Fria entre os EUA e a URSS, a ordem internacio­nal permitirá uma coexistênc­ia dita pacífica? Após a II Guerra Mundial, um forte conjunto de instituiçõ­es internacio­nais foi criado, incluindo as Nações Unidas, o Banco Mundial e a NATO. Hoje, infelizmen­te, muitas destas entidades parecem desgastada­s e cada vez mais irrelevant­es. Evitar a dissidênci­a completa das duas economias, que poderia culminar na polarizaçã­o do poder global e em dois rivais de costas voltadas, requer o estabeleci­mento de uma nova ordem mundial baseada na cooperação e focada na resolução de desafios comuns, como as mudanças climáticas, as desigualda­des de rendimento­s, as migrações e até as pandemias. À medida que a História segue o seu curso, só me ocorrem as palavras do filósofo espanhol George Santayana: “Aqueles que não se recordam do passado estão condenados a repeti-lo.”

A questão sino-americana é talvez o desafio mais importante dos nossos tempos.

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