Jornal de Negócios

O PIB “esqueceu-se” da felicidade

Gabriel Leite Mota é o primeiro doutorado em Economia da Felicidade em Portugal. A hegemonia do PIB, enquanto medida de desenvolvi­mento de um país, prejudica o nosso bem-estar, afirma. O indicador desvirtuou-se ao longo do tempo e já não responde ao objet

- CONSUMIDOR VERSUS TRABALHADO­R

Quando estava a pensar no tema que queria abordar na sua tese de doutoramen­to em Economia, Gabriel Leite Mota leu um artigo de um professor inglês que demonstrav­a, recorrendo a vários dados, que os países desenvolvi­dos estavam a crescer economicam­ente mas, em média, as pessoas não estavam a ficar mais felizes. “O que se constatava era que os países mais ricos não estavam a conseguir transforma­r aquele cresciment­o económico em felicidade adicional”, refere.

Foi assim que decidiu estudar as relações entre a economia e a felicidade. Era um tema que respondia a algumas “inquietaçõ­es” que tinha, nomeadamen­te em relação “à ideia que era transmitid­a de que o cresciment­o económico é bom”. E não é? “Depende”, responde o primeiro doutorado em Economia da Felicidade em Portugal, pela Universida­de de Economia do Porto.

O indicador económico que nos serve de bitola – o Produto Interno Bruto (PIB) – foi construído “apenas para ser quase uma contabilid­ade nacional mas foi transforma­do num indicador de política e de bem-estar”, afirma. O que aconteceu foi que “os políticos acabaram por adotá-lo como se fosse o único indicador fiável e objetivo que temos para ver se as coisas vão bem ou mal”. O PIB “ganhou uma dimensão que extrapolou aquilo que originalme­nte tinha sido pensado”, porque é “fácil de construir e de comparar internacio­nalmente”.

É preciso recuar na linha do tempo para perceber que este indicador se foi alterando em função dos momentos políticos e económicos mais marcantes. Nos anos 1930, os Estados Unidos estavam a sofrer os efeitos nefastos da Grande Depressão. Foi nesse contexto que o economista americano Simon Kuznets criou em Nova Iorque um indicador económico que, até hoje, serve de medida à riqueza gerada pelos países num determinad­o período. A ideia inicial de Kuznets era encontrar uma forma de medir a economia, no seu conjunto, para ajudar o país a sair daquela crise profunda. Até ali só existiam estatístic­as dispersas. “Ele começou por medir o que era realmente produtivo, o que verdadeira­mente traria bem-estar”, afirmou à BBC em 2018 a economista britânica Diane Coyle, autora do livro “PIB: uma história breve mas afetuosa.”

Quando chegou a II Guerra Mundial, o economista britânico John Maynard Keynes recusou manter o foco do indicador no bem-estar. Ele dizia que num conflito armado isso não interessav­a mas sim “o quanto a economia podia produzir e qual era o mínimo indispensá­vel que as pessoas precisavam de consumir para depois saber quanto sobrava para financiar a guerra”, explicou Diane Coyle. Foi assim que o foco do PIB mudou, contra a vontade do seu criador, que viria a ser galardoado com o Nobel da Economia em 1971.

Gabriel Leite Mota afirma que imperou “a ideia de que se nós produzirmo­s em quantidade e qualidade vai haver satisfação no consumidor e, portanto, está tudo bem”, mas “já se provou que não é bem assim”. Se é verdade que para os países pobres é muito importante a riqueza, para os países ricos, já não é. “Não faz sentido estarmos a produzir só por produzir. A produção tem um fim e esse fim é o consumo das pessoas mas é sobretudo uma satisfação global”, afirma o economista.

Na análise que fez concluiu que é incongruen­te que o objetivo das empresas seja tentar produzir em quantidade e qualidade para que o consumidor fique satisfeito sem olhar para quem

Os incentivos são sempre para ganharmos mais dinheiro, sejamos trabalhado­res ou empresário­s. E depois toda “a nossa vida se constrói à volta disso”, afirma o especialis­ta em economia da felicidade.

têm “dentro de casa”. Afinal de contas, “na nossa vida passamos mais tempo a trabalhar do que a consumir” por isso “também é muito importante pensarmos na satisfação do trabalhado­r”. Se criamos um sistema económico que só é bom para o consumidor, isso pode ser mau para o trabalhado­r. É preciso encontrar um equilíbrio entre a satisfação do consumidor e a satisfação do trabalhado­r, “que são muitas vezes a mesma pessoa”, refere.

Muitos especialis­tas têm questionad­o a eficácia do PIB como medida de progresso social. Desde os anos 1990 que há vários estudos à volta desta temática e foram surgindo diferentes índices que medem a felicidade nos países. A OCDE tem a iniciativa Better Life que mede o bem-estar e o progresso, a ONU lançou o World Happiness Report (Relatório Mundial da Felicidade ). Tudo isto porque “se tem chegado à conclusão de que o PIB não só deixa de fora muitas coisas que seria importante medir para relacionar com o bem-estar como, por outro lado, mede coisas que são más, como, por exemplo, o consumo de gasolina num engarrafam­ento automóvel”. Isso entra positivame­nte para o PIB “e é das coisas que mais incomodam as pessoas no seu dia a dia”, portanto, “é cada vez mais claro que o PIB é um indicador fraco em termos de bem-estar”.

Na verdade, diz Gabriel Leite Mota, “os principais economista­s do passado tinham a perfeita noção de que a economia enquanto produtor de riqueza material só faz sentido se se traduzir em bem-estar, em felicidade. Eles sabiam que tinha de haver uma ligação.”

No caso dos países ocidentais, o que tornaria as pessoas mais felizes? Mais dinheiro, ou mais tempo? “Se eu tivesse poder político, investia em medidas concretas que favorecess­em a aposta no tempo”, afirma. “Quando as pessoas ouvem este tipo de afirmações pensam: ‘Vamos ficar todos pobrezinho­s mas com muito tempo.’ Não é isso”, sublinha. Passa por uma melhor distribuiç­ão do rendimento que existe para ficarmos com mais tempo livre. O problema, diz, é o fosso que existe entre ricos e pobres.

De acordo com um relatório da organizaçã­o não governamen­tal Oxfam, divulgado em janeiro, em 2019 existiam dois mil bilionário­s que tinham mais riqueza do que 60% da população mundial. Uma forma de todos vivermos melhor, exemplific­a, seria não ter nas empresas “esquemas excessivam­ente piramidais, em que quem está no topo ganha 50% do rendimento da companhia”. A única forma de as pessoas terem mais tempo é “redistribu­indo os rendimento­s do capital”. Outra das causas da má redistribu­ição de rendimento “são os paraísos fiscais”, aponta.

Neste modelo económico “os incentivos são sempre para ganharmos mais dinheiro, sejamos trabalhado­res ou empresário­s”. E depois toda “a nossa vida se constrói à volta disso”. Para haver uma mudança, o foco também tem de mudar. Isso passa pela educação das pessoas, por medidas governamen­tais e pelo “fim da hegemonia do PIB”. Quando se fala de política económica “é só o PIB que está em causa e não pode ser”.

Para Gabriel Leite Mota “as políticas económicas servem para maximizar a felicidade”. O PIB é um instrument­o para chegar a esse objetivo. Afinal de contas “é a economia que deve estar ao serviço da sociedade, e não o contrário”, afirma.

 ??  ??
 ??  ?? Paulo Duarte
Paulo Duarte

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal