A amostra portuguesa no Eurogrupo
Na histórica e irregular calçada portuguesa, a ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque deu mais uns passos europeus de braço dado com o seu homólogo alemão Wolfgang Schäuble. Com recurso à mão de obra intelectual qualificada pelos mercados neoliberais, a nossa ministra das Finanças traçou o passeio alemão no Eurogrupo de mãos dadas com a portugalidade tacanha e subserviente, galgando o percurso calcário da miniatura da nossa calçada a preto e branco, as suas cores de sempre, desde meados do século XIX. Fica para a História: uma vez mais, uma mestre calceteira cumpriu exemplarmente a folha de serviço de obra.
Schäuble deve ter guardado algumas amostras da calçada portuguesa como tantos outros guardaram pedaços do Muro de Berlim no momento da queda. Há coisas que devem ser guardadas para memória futura. Nada melhor do que entregar nas mãos de Merkel um pedacinho da nossa história, servida no prato do calculismo e do que se julga intolerável para um país que também foi, à semelhança dos gregos, intervencionado. Merkel, oriunda da RDA, porta das traseiras do Muro de Berlim, nunca teve razão para duvidar das amostras portuguesas. Agora, aliada ao ministro das Finanças espanhol Luís de Guindos no tacticismo político interno que evite a ascensão do partido Podemos em Espanha, a nossa ministra das Finanças foi a maior defensora dos opressores contra os oprimidos pela incapacidade de fazer o seu “mea culpa”. Sejamos claros: o nosso Governo não fez pela soberania, identidade e interesse de Portugal em três anos e três meses, o que o novo Governo grego conseguiu fazer pela Grécia em três semanas.
A grande vitória das negociações gregas no Eurogrupo foi ter evitado o suicídio. Foi ter deitado por terra a ideia daqueles que pensavam que os radicais não sabem de estratégia, que deixariam ruir os sonhos românticos de justiça como um castelo de cartas porque permaneceriam eternamente agarrados à sua árvore no meio da floresta, que não destilariam senão impropérios e clamor incendiário por um rigoroso ajuste de contas. Já agora, diga-se, bem devido. Pensariam até – os detractores desta Europa inclusiva que os gregos voltaram a colocar democraticamente em cima da mesa – que Yanis Varoufakis usaria de todas as armas de arremesso possíveis e imaginárias, que saltitaria em cada uma das mesas do Eurogrupo entre a arrogância e o peso específico, como animal enraivecido pelo receita de austeridade falida que impuseram ao seu povo. Enganaramse, os abençoados e iluminados da economia vigente e avençada. O máximo que conseguiram ver foi Varoufakis com um cachecol.
Passar pela vergonha de ouvir a autocrítica do próprio Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, referindo que “pecámos contra a dignidade dos povos, especialmente na Grécia, Portugal e Irlanda”, salientando que “falta legitimidade democrática à troika” e que “há que tirar lições da história e não repetir erros”, sem que os nossos responsáveis políticos assumam a subserviência a três indivíduos que aterravam no aeroporto da Portela para executarem o Orçamento que eles próprios elaboraram ou condicionaram é um exercício grave de humilhação e masoquismo. Quanto mais tempo vamos agraciar o agressor? Estamos tão rendidos ao agressor que não conseguimos cortar o cordão umbilical que nos une a quem nos passou a mão pelo pêlo com vara vermelha, preta e ouro (a Alemanha, nos termos do Tratado da Unificação de 1990, assume a cor amarela da sua bandeira como cor “ouro”).
Com as propostas reformistas gregas de ontem para manter o apoio financeiro europeu e com o mês de Março no horizonte para a discussão e votação do acordo pelo parlamento finlandês, há um objecto voador não identificado que desapareceu sem deixar rasto na passada semana: em que trituradora reciclaram o plano que a Comissão Europeia tinha elaborado para entregar ao Eurogrupo como saída para o impasse das dívidas soberanas? Haja quem consiga obter e colar as tiras de papel recortadas a pente fino, trucidadas nos gabinetes dos ministros das Finanças do Eurogrupo. As amostras mais significativas, enoveladas no lixo dos gabinetes portugueses e espanhóis. O documento, inteiro e intocado, arquivado em cofre no gabinete de Wolfgang Schäuble em Berlim, sede da Europa, ao lado da amostra da calcária calçada portuguesa a preto e branco que Merkel recebeu com afecto risonho. No jogo das cores, a bandeira alemã continua a ondular amarelo-ouro.