Regresso a um ponto de partida
Regresso a um ponto de partida, a França em 1986, onde iniciei e realizei parte do meu trabalho de doutoramento. Tempos duros à época: o salário de um jovem Assistente da UP, completado com algum apoio familiar, mal dava para chegar ao final de cada mês. Os cerca de 230 euros do salário bruto, igual ao líquido porque só a partir da letra A se pagava impostos na Função Pública, esticavam com dificuldade até final do mês. A verdadeira Europa começava em França, onde o salário mínimo era quase o triplo do meu vencimento. Em Espanha ainda se aguentava o impacto, mas quando se passava Hendaia
Assisti, por isso, com ânimo e entusiasmo ao crescimento do país e às reformas do dr. Cadilhe (IRS, IRC, IVA). Até 1990 não alterei a minha posição profissional, mas o salário já permitia pagar as contas e pontualmente uma passagem pela pizzaria Majestic, em Biarritz, único local com um horário latino decente, sem risco de cozinha fechada antes das 22 horas.
Decidi regressar. Preferi Portugal e o Porto, definitivamente. Tive essa liberdade!
Na primeira metade dos anos 90, quando se tinha decidido avançar com o euro, em França já se falava da necessidade de controlar a despesa pública! Austeridade na década de 90! Que estranho. Congelamento de salários na Função Pública. Por cá promoviam-se passagens massivas de pessoas à reforma, com pouco mais de 50 anos e salário completo pelo último vencimento! Mais do que um direito adquirido, era um contrato de confiança inviolável, explicaram os doutos mais de 20 anos depois. Estranho, porque na Europa me falavam em reforma pela média ponderada dos salários. Por cá, aos primeiros sinais de alguma moderação, barraram-se pontes, mudou o Governo e retomou-se a euforia, com auge marcado para 98/99. Para além dos aumentos normais da Função Pública, tive direito a um extra de quase 20% em quatro anos, porque o estatuto de um professor universitário a isso obrigava. A coisa corria bem e agradável e eu estava cada vez mais próximo da verdadeira Europa. No auge da euforia houve um levantamento na administração pública porque parte dela não tinha tido direito a ponte, decretada algures pelo mês de abril ou maio. Não havia problema, sentenciou o chefe, magnânimo: teriam direito a ponte por decreto noutro dia. Muitos dos ex-governantes eram promovidos a grandes gestores, em muitos casos de empresas públicas. Dizia-se que era muito difícil contratar um bom gestor público por menos de 3000 a 4000 contos por mês (15 000 a 20 000 euros!), caso contrário iam para o privado! Pareciam dotados de uma capacidade rara de multiplicar valor, que eu supunha ser real. Apareciam em revistas do social, em festas fantásticas. Nos anos 90 quem decidia colaborar com a indústria a partir da universidade ainda era visto como espécie rara. Quem criava uma empresa, em português moderno start-up, ou spin-off, contava no máximo com algum eventual apoio da família e o desdém da banca.
Veio então a crise, desta vez a sério. Primeiro com o discurso da tanga, encerrado por uma longa fuga para o paraíso, a que se seguiu um desconcerto de alguns meses. Mudou o Governo e a crise só podia ter sido engano. Era preciso era atacar o problema com força e determinação. Confesso que a capacidade, e seriedade, do ministro das Finanças II (após um MF I de pouca duração) me deixaram esperançado durante algum tempo. Mas o próprio foi sendo progressivamente engolido pela vertigem do poder, até ao descrédito final. Descobrimos então que os grandes gestores, afinal, não o eram assim tanto. Que o valor criado, afinal, não era real, mas sim fruto de especulação sobre supostos ativos. Doeu no osso. Até porque um dos grandes pilares do país, a confiança na banca, acabava de ruir! Confesso que fiquei perturbado. Um ano após um aumento de quase 3% em ano de eleições falou-se em crise grave e houve cortes salariais na Função Pública! E vieram os PEC, primeiro o I, depois o II, até ao PEC final. Foi o 4, mas poderia ser outro qualquer.
Veio a troika dizer e impor como deveríamos pagar aos tipos que nos tinham emprestado o dinheiro. Empurrado para a frente de batalha, o novo Governo e a troika disseram que tudo estava em causa. Instalou-se a confusão. Até as famosas reformas por inteiro e pelo último vencimento tinham que ser corrigidas! Que se lixe a troika, gritamos. Apareceu a “geração à rasca” a clamar contra a ausência de futuro, com manifestações a condizer. Vi e ouvi com atenção. Mais do que aqueles que apareciam na televisão, preocupava-me uma maioria silenciosa de jovens com valor que ia saindo do país, a par de muitos empresários sérios que faziam o mesmo para resolver problemas pessoais, que se misturavam com as dificuldades das suas empresas.
Senti-me mal e angustiado. Não só por ver muitos dos nossos melhores jovens partir, mas sobretudo por perceber que provavelmente lhes estávamos a coartar por demasiado tempo a liberdade de poder voltar!
Sinto que devemos todos lutar por um país melhor. Em cada momento e em cada lugar. Porque é nosso dever voltar a devolver a liberdade a estes jovens. O regresso de muitos deles será a garantia do nosso futuro. E a liberdade de decidir das próximas gerações será a liberdade de todos nós.