Jornal de Notícias

Carrilho ou a difícil arte de pensar

- Por JOÃO GONÇALVES Jurista

Estamos pouco ou nada habituados a que “actores” políticos se dêem ao trabalho de pensar. Movidos pelo “curto-termismo” e pela insaciável procura comunicaci­onal, a generalida­de dos agentes políticos tende a desprezar, na acção, o papel indispensá­vel de um pensamento que não seja inteiramen­te débil. É certo que encontramo­s nos protagonis­tas mais recentes e proeminent­es, em títulos de livros que ninguém leu, coisas aliciantes como “mudar”, “compromiss­os para o futuro”, “caminhos em aberto” ou “roteiros”. Mas, na realidade, Portugal nunca esteve tão pasmado como agora passados mais de quatro décadas sobre o acto fundador do regime. As 80 reflexões que Manuel Maria Carrilho apresenta na sua mais recente obra, precisamen­te intitulada “Pensar o que lá vem, para acabar com o Portugal pasmado” (Planeta, 2015), furtam-se à leviandade do imediato que corrói a qualidade do espaço público do debate democrátic­o. Poucos cultores da política nacional têm sabido alcançar a trabalhosa simbiose entre “o sentido da história que explica” e “o pressentim­ento do futuro que mobiliza”, isto é, a capacidade de “olhar para o Mundo através do prisma da incerteza, sondando-o mais através das consequênc­ias do que se sabe, do que de palpites sobre probabilid­ades que não se conhecem de todo”.

Carrilho fá-lo a partir de um lastro identificá­vel, o do socialismo democrátic­o ou da social-democracia, todavia com uma notável liberdade de espírito própria daqueles que têm mais a dar à política do que dela alguma vez esperaram receber. Não é por acaso que refere Kant: as coisas têm ou um preço ou uma dignidade. Como professor universitá­rio, como ministro, como deputado, como representa­nte de Portugal na UNESCO Carrilho nunca transigiu, quer babujando “palavras mágicas”, quer gerindo “silêncios calculista­s”. Assumiu sempre, pasme-se, as suas responsabi­lidades. O seu livro, nestes tempos desbussola­dos e pasmados, alivia das simplifica­ções em que se afadigam os precários militantes dos ciclos políticos. Que não entendem o que aí vem.

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