Mulher em suja caravana revela colmeias sem condições
Porto Casas antigas são divididas em minúsculos alojamentos temporários no centro da cidade União de freguesias visitou o local e vai pedir fiscalização a várias entidades competentes
Maria tem 56 anos. Tanto tropeçou na vida que a vida já não repara nela. Vive numa autocaravana infecta, cem euros por mês, à sombra de um velho palacete que esconde misérias novas. No coração do Porto.
Contamos a história de Maria da Piedade. Cresceu num colégio de freiras, chegou a casar e foi mãe, mergulhou na heroína, salva-se na metadona. Contraiu hepatite C, tem cirrose. Da família só rumores, distância, o medo de pesar. Levou-nos a ela o facto de viver numa autocaravana degradada, nas traseiras de um palacete burguês onde funcionou a Regisconta, “aquela máquina”, fenecido potentado empresarial. Mas as misérias, mais do que as conversas, são como as cerejas, e muitas outras histórias vêm agarradas a esta.
À história de Maria soma-se a do número 406 da Rua de Álvares Cabral, junta-se a realidade pouco visível do aloja- mento temporário que, pelas características e modelo de negócio, propicia teto a quem não pode aventurar- se no mercado de arrendamento. É, também, a realidade de uma outra casa, do outro lado da rua. Pertence à mesma empresa, que defende a justeza e transparência da atividade (ver na página seguinte).
Visitámos esse microcosmos com António Fonseca, presidente da Junta da união de freguesias do Centro Histórico, e com uma assistente social ao serviço da autarquia, que sinalizaram vários casos, passando a acompanhá-los e deles dando conta às entidades competentes.
Voltemos a Maria da Piedade. Paga cem euros por mês e garante ter chegado àquela solução (ocupar, para alojamento, uma velha autocaravana de matrícula alemã que por ali ficara) por não ter aces- so a coisa melhor (recebe 178 euros de Rendimento Social de Inserção). “Estive noutra casa, em Antero de Quental, mas ele [o dono da empresa] levava muito caro. Vim cá e vi esta caravana por cem euros. Não era assim: estava muito bonitinha, até chover”.
Vive ali vai para dois anos. Chove lá dentro, não tem água, é visitada por ratos, à noite, tudo está podre. Por mais baldes que se despejem, o cheiro fétido da exígua latrina não desaparece. Um cabo de antena é o cordão umbilical que liga à casa: “Temos direito a TV Cabo”.
Dezenas de pessoas
Todos os “apartamentos” têm TV Cabo. A casa grande tem mais de 30, algumas 70 pessoas lá dormirão. Em cada porta, lá dentro, um número. Um alojamento. Uns maiorzitos, outros diminutos, mas quem vive com pouco ou nada pode ver num cubículo uma “coisa jeitosa”.
Felisberto Silva, que vai partilhando a vida com Maria (garante comida para os dois, numa instituição), mora na casa do lado de lá. Na cave. Não ocupa a cave, dividida Maria vive numa autocaravana velha vai para dois anos em três alojamentos. Só um destes, equivalente a uma cela de prisão, que tem impecável. Não deixa de ser uma cela, sem luz exterior ou ventilação numa cave entrevada: o incumprimento fez os senhorios a cortar água e luz.
Felisberto não esconde o litígio e admite que fez uma ligação direta para não ficar às escuras. Diz que teve a porta estroncada (“sou hipertenso e até medicamentos levaram; chamei a Polícia”). Ao lado, num alojamento maior, mãe e dois filhos adultos estão à luz de velas e sem água, por não pagarem a renda, alegadamente de 450 euros.
Pouca gente fala. “Cheguei ontem”, “não posso”. Ouvese de tudo, entre olhares desconfiados e posturas fugidias. Em cada canto haverá longas histórias de vida. Outras virão. Ao lado da casa, numa estreita passagem (a largura de um carro), está a ser construída uma longa estrutura préfabricada, dividida em seis parcelas iguais, outras tantas portas a escassos centímetros da parede lateral do imóvel. Dizem-nos, ali, que serão alojamentos, a 150 euros mensais. Pensamos na “frigideira” e no campo de concentração do Tarrafal. A empresa assegura que serão “armazéns”.
Construção dividida em seis parcelas ao lado da casa
Assistente social e presidente da junta falam com moradora da caravana
Felisberto Silva vive num espaço equivalente a uma cela de prisão
RATOS E CHUVA SÃO VISITANTES DE ALOJAMENTO PRECÁRIO QUE NÃO TEM ÁGUA CORRENTE