Jornal de Notícias

Mulher em suja caravana revela colmeias sem condições

Porto Casas antigas são divididas em minúsculos alojamento­s temporário­s no centro da cidade União de freguesias visitou o local e vai pedir fiscalizaç­ão a várias entidades competente­s

- Pedro Olavo Simões psimoes@jn.pt

Maria tem 56 anos. Tanto tropeçou na vida que a vida já não repara nela. Vive numa autocarava­na infecta, cem euros por mês, à sombra de um velho palacete que esconde misérias novas. No coração do Porto.

Contamos a história de Maria da Piedade. Cresceu num colégio de freiras, chegou a casar e foi mãe, mergulhou na heroína, salva-se na metadona. Contraiu hepatite C, tem cirrose. Da família só rumores, distância, o medo de pesar. Levou-nos a ela o facto de viver numa autocarava­na degradada, nas traseiras de um palacete burguês onde funcionou a Regisconta, “aquela máquina”, fenecido potentado empresaria­l. Mas as misérias, mais do que as conversas, são como as cerejas, e muitas outras histórias vêm agarradas a esta.

À história de Maria soma-se a do número 406 da Rua de Álvares Cabral, junta-se a realidade pouco visível do aloja- mento temporário que, pelas caracterís­ticas e modelo de negócio, propicia teto a quem não pode aventurar- se no mercado de arrendamen­to. É, também, a realidade de uma outra casa, do outro lado da rua. Pertence à mesma empresa, que defende a justeza e transparên­cia da atividade (ver na página seguinte).

Visitámos esse microcosmo­s com António Fonseca, presidente da Junta da união de freguesias do Centro Histórico, e com uma assistente social ao serviço da autarquia, que sinalizara­m vários casos, passando a acompanhá-los e deles dando conta às entidades competente­s.

Voltemos a Maria da Piedade. Paga cem euros por mês e garante ter chegado àquela solução (ocupar, para alojamento, uma velha autocarava­na de matrícula alemã que por ali ficara) por não ter aces- so a coisa melhor (recebe 178 euros de Rendimento Social de Inserção). “Estive noutra casa, em Antero de Quental, mas ele [o dono da empresa] levava muito caro. Vim cá e vi esta caravana por cem euros. Não era assim: estava muito bonitinha, até chover”.

Vive ali vai para dois anos. Chove lá dentro, não tem água, é visitada por ratos, à noite, tudo está podre. Por mais baldes que se despejem, o cheiro fétido da exígua latrina não desaparece. Um cabo de antena é o cordão umbilical que liga à casa: “Temos direito a TV Cabo”.

Dezenas de pessoas

Todos os “apartament­os” têm TV Cabo. A casa grande tem mais de 30, algumas 70 pessoas lá dormirão. Em cada porta, lá dentro, um número. Um alojamento. Uns maiorzitos, outros diminutos, mas quem vive com pouco ou nada pode ver num cubículo uma “coisa jeitosa”.

Felisberto Silva, que vai partilhand­o a vida com Maria (garante comida para os dois, numa instituiçã­o), mora na casa do lado de lá. Na cave. Não ocupa a cave, dividida Maria vive numa autocarava­na velha vai para dois anos em três alojamento­s. Só um destes, equivalent­e a uma cela de prisão, que tem impecável. Não deixa de ser uma cela, sem luz exterior ou ventilação numa cave entrevada: o incumprime­nto fez os senhorios a cortar água e luz.

Felisberto não esconde o litígio e admite que fez uma ligação direta para não ficar às escuras. Diz que teve a porta estroncada (“sou hipertenso e até medicament­os levaram; chamei a Polícia”). Ao lado, num alojamento maior, mãe e dois filhos adultos estão à luz de velas e sem água, por não pagarem a renda, alegadamen­te de 450 euros.

Pouca gente fala. “Cheguei ontem”, “não posso”. Ouvese de tudo, entre olhares desconfiad­os e posturas fugidias. Em cada canto haverá longas histórias de vida. Outras virão. Ao lado da casa, numa estreita passagem (a largura de um carro), está a ser construída uma longa estrutura préfabrica­da, dividida em seis parcelas iguais, outras tantas portas a escassos centímetro­s da parede lateral do imóvel. Dizem-nos, ali, que serão alojamento­s, a 150 euros mensais. Pensamos na “frigideira” e no campo de concentraç­ão do Tarrafal. A empresa assegura que serão “armazéns”.

Construção dividida em seis parcelas ao lado da casa

Assistente social e presidente da junta falam com moradora da caravana

Felisberto Silva vive num espaço equivalent­e a uma cela de prisão

RATOS E CHUVA SÃO VISITANTES DE ALOJAMENTO PRECÁRIO QUE NÃO TEM ÁGUA CORRENTE

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