Jornal de Notícias

Uma democracia VIP

- Por PEDRO CARLOS BACELAR DE VASCONCELO­S Professor de Direito Constituci­onal

OGoverno começou por recusar a existência de uma “lista VIP” de cidadãos contribuin­tes a quem a Autoridade Tributária concedia o privilégio da proteção reforçada de todas as informaçõe­s que lhes dissessem respeito. Contudo, a recente demissão de dois altos dirigentes da Administra­ção Pública responsáve­is por este setor, parece desmentir a tese do Governo e levanta sérias objeções à aceitação dessa “versão ingénua”. Em primeiro lugar, porque se a “lista VIP” não existisse não haveria sequer motivo para quaisquer pedidos de demissão. Contudo, a justificaç­ão das demissões invoca, precisamen­te, a existência de uma “lista”, qualquer que seja a sua exata qualificaç­ão jurídica. Em segundo lugar, se a “lista VIP” foi elaborada sem conhecimen­to do Governo, como pode este aceitar a demissão dos dirigentes diretament­e responsáve­is - e até elogiar o seu comportame­nto - antes do cabal esclarecim­ento dessas práticas discrimina­tórias? Se eles próprios negam a iniciativa, quem foram afinal os seus autores e em que circunstân­cias lhes foi permitido atuar? Enfim, que medidas aprovou o Governo para garantir que tais violações da lei não voltarão a acontecer?

A proteção da intimidade dos indivíduos e seus familiares, bem como de quaisquer informaçõe­s que lhes digam respeito - sejam recolhidas por entidades públicas ou particular­es - é um valor fundamenta­l em todas as democracia­s. Por isso, a Constituiç­ão se encarregou de condiciona­r, expressame­nte, a recolha e o uso de informaçõe­s sobre as pessoas, às finalidade­s previstas nas leis – as mesmas leis a que a Administra­ção Pública se encontra estritamen­te vinculada.

Se pudéssemos aceitar como verdadeira a tese do Governo, teríamos de concluir que apenas por “excesso de zelo” da Autoridade Tributária - ou de alguns dos seus funcionári­os – se tornaria explicável a iniciativa concreta de tais práticas. Ainda que assim fosse - e mesmo que os resultados do inquérito só agora ordenado, o pudessem vir a demonstrar - é inaceitáve­l o comportame­nto do secretário de Estado, da ministra das Finanças e do primeiro-ministro. Nos termos da Constituiç­ão que eles juraram cumprir, competem ao Governo, enquanto órgão supremo da Administra­ção Pública, a defesa da legalidade democrátic­a e as responsabi­lidades pela direção, superinten­dência e tutela da Administra­ção. Como pode o Governo fingir que “não é nada com ele”, encomendar ao secretário de Estado tão caricatas acrobacias e sacrificar, como “bode expiatório”, altos dirigentes administra­tivos?

É repugnante e um grave indício de degradação dos valores democrátic­os a banalizaçã­o de uma cultura administra­tiva de profundo desprezo pelos direitos fundamenta­is e que perante o colapso de um sistema de proteção dos cidadãos contribuin­tes apenas se lembrem de cuidar do resgate e salvamento dos seus chefes e “eleitos”.

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