Sem-abrigo do Porto processam o Estado
Dizem-se vítimas de negligência e pedem investigação às suas condições de vida
Por estes dias, dará entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto uma ação popular contra o Estado. É intentada por um grupo que inclui cidadãos sem-abrigo e surge, essencialmente, “porque os sem-abrigo não têm satisfeitas as necessidades estipuladas por lei”, segundo a advogada Carla Ramos. Seguirá também para a Justiça um pedido de indemnização e, por fim, uma outra ação relativa a pessoas sem-abrigo que morreram, “quanto mais não seja para se dar início a uma investigação e para se saber se houve negligência por parte do Estado”, adianta a jurista.
Carla Ramos acredita que será a primeira vez, a nível europeu, que um país é processado por pessoas sem-abrigo. E garante: “Caso não logremos ter sucesso nos tribunais portugueses e esgotadas as instâncias nacionais, recorreremos aos tribunais internacionais”. Uma das questões em causa é o valor que “o Estado é obrigado a estipular” para assegurar as condições mínimas de subsistência a essas pessoas. Por outro lado, pretende-se que os sem-abrigo sejam “indemnizados por aquilo que já passaram”.
Em toda a cidade do Porto há pessoas a viver em condições miseráveis. Um dos sinais mais flagrantes é o alojamento para os sem-abrigo em pensões e quartos particulares que a Segurança Social recomenda e paga indiretamente – pela via do Rendimento Social de Inserção, que é de 178,15 euros, e dos apoios da Ação Social, meios que, no conjunto, deveriam assegurar a essas pessoas comida, dormida, saúde, higiene. E dignidade.
Não serão todos, é certo, mas quem conhece bem esta realidade garante-nos que há quartos entre 150 e 250 euros que são autênticos pardieiros. Não faltam sítios onde chove e outros há em que o hóspede, para conseguir deitar-se, tem de se ajoelhar – são “quartos” improvisados em vãos de escada. Fonte de uma instituição parceira do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) do Porto encontra dois motivos para o Estado recorrer a pensões de baixa categoria: “Não há dinheiro para pagar quartos mais caros”; por outro lado, não é qualquer hospedaria que aceita um sem-abrigo acabado de sair da rua, para mais se for alcoólico ou toxicodependente e estiver na fase inicial de tratamento.
António dormiu num desses quartos anos suficientes para concluir o pior: “Os que vivem em pensões não têm o mínimo de condições higiénicas ou de salubridade. É tudo um negócio”. Negócio, aqui, parece sinónimo de aproveitamento: o sem-abrigo é o elo mais fraco num ciclo vicioso que não ter fim.
Os proprietários queixam-se de danos. “Então, se os quartos ficam danificados, por que é que não os arranjam? E, se não os arranjam, por que é que cobram a mais?” - as questões são de Fernando Salgueiro, do grupo de voluntários Abraço na Noite, também parceiro do NPISA. No seu entender, “há claramente um aproveitamento dessas situações de miséria social” e a solução para o problema passaria na mesma pelo Estado, mas na condição de senhorio. “Pensando que a Segurança Social é proprietária de muitos prédios que existem na cidade, por que não os transforma em habitação?”, sugere.
Fernando Salgueiro lembra que em causa estão pessoas que perderam todos os hábitos, sobretudo sociais, e que, por isso, têm de ser reeducadas.