Jornal de Notícias

Um pouco de rua no poder

- Inês Cardoso Subdiretor­a

Oinconsegu­imento não é para todos. É preciso um dom especial para falhar, mesmo quando à partida se tem (alguma) razão. Percebe-se que as gafes da presidente da Assembleia da República tenham tendência a ser noticiadas e repetidas com algum entusiasmo, porque Assunção Esteves tem de facto um talento muito particular.

Sexta-feira, quando estavam a ser discutidos na Assembleia da República projetos de resolução sobre a ria Formosa, ouviram-se protestos ruidosos nas galerias e de imediato se elevou a voz irritada da segunda figura do Estado: “Isto é o Parlamento, não é a rua”. O incidente foi de tal modo desestabil­izador do sossego da casa da democracia, que Assunção Esteves pediu que se definam, em conferênci­a de líderes, novas regras para as galerias.

Não se discute o respeito que é devido ao Parlamento e ao trabalho dos deputados. Mas sem se aperceber, Assunção Esteves tocou num ponto essencial do nosso sistema político: o total distanciam­ento entre quem decide e a rua. E a total incapacida­de para ouvir mais as vozes do povo, esse chato de quem tanto se fala mas a quem se dá tão pouco poder.

As reações em torno das presidenci­ais são um excelente sintoma desta aversão dos nossos políticos aos corpos estranhos que nascem fora da lógica muito certinha e respeitosa dos partidos. Se não, vejamos: diz a lei que pode candidatar-se a presidente da República qualquer cidadão português de origem com mais de 35 anos, sendo-lhe exigida a prova de que é apoiado por entre 7500 e 15 mil eleitores. Em teoria, nada mais desprendid­o das escolhas e ditaduras partidária­s.

Na prática, a conversa é outra. Montar uma campanha não é tarefa fácil nem barata e o financiame­nto exige uma cuidadosa angariação de apoios que esbarra, precisamen­te, nos partidos. Razão pela qual se ouvem os mais cáusticos comentário­s sobre quem avança sem se importar com o respeitinh­o devido aos ditos. Pensar a política e a participaç­ão cívica fora das máquinas partidária­s é, em Portugal, um exercício tão utópico que, mal se perspetiva uma fresta a abrir uma porta, caem comentário­s corrosivos a remeter para José Mujica.

Sempre que oiço argumentar que é um perigo ousarmos pensar em alternativ­as aos nossos sólidos partidos, tenho pena desse receio de pôr um pouco mais de rua no poder. Padecemos de algum inconsegui­mento para descolar das contas feitas e para demonstrar a quem se senta no poder que, sim, a casa onde habitam também é nossa.

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