Um pouco de rua no poder
Oinconseguimento não é para todos. É preciso um dom especial para falhar, mesmo quando à partida se tem (alguma) razão. Percebe-se que as gafes da presidente da Assembleia da República tenham tendência a ser noticiadas e repetidas com algum entusiasmo, porque Assunção Esteves tem de facto um talento muito particular.
Sexta-feira, quando estavam a ser discutidos na Assembleia da República projetos de resolução sobre a ria Formosa, ouviram-se protestos ruidosos nas galerias e de imediato se elevou a voz irritada da segunda figura do Estado: “Isto é o Parlamento, não é a rua”. O incidente foi de tal modo desestabilizador do sossego da casa da democracia, que Assunção Esteves pediu que se definam, em conferência de líderes, novas regras para as galerias.
Não se discute o respeito que é devido ao Parlamento e ao trabalho dos deputados. Mas sem se aperceber, Assunção Esteves tocou num ponto essencial do nosso sistema político: o total distanciamento entre quem decide e a rua. E a total incapacidade para ouvir mais as vozes do povo, esse chato de quem tanto se fala mas a quem se dá tão pouco poder.
As reações em torno das presidenciais são um excelente sintoma desta aversão dos nossos políticos aos corpos estranhos que nascem fora da lógica muito certinha e respeitosa dos partidos. Se não, vejamos: diz a lei que pode candidatar-se a presidente da República qualquer cidadão português de origem com mais de 35 anos, sendo-lhe exigida a prova de que é apoiado por entre 7500 e 15 mil eleitores. Em teoria, nada mais desprendido das escolhas e ditaduras partidárias.
Na prática, a conversa é outra. Montar uma campanha não é tarefa fácil nem barata e o financiamento exige uma cuidadosa angariação de apoios que esbarra, precisamente, nos partidos. Razão pela qual se ouvem os mais cáusticos comentários sobre quem avança sem se importar com o respeitinho devido aos ditos. Pensar a política e a participação cívica fora das máquinas partidárias é, em Portugal, um exercício tão utópico que, mal se perspetiva uma fresta a abrir uma porta, caem comentários corrosivos a remeter para José Mujica.
Sempre que oiço argumentar que é um perigo ousarmos pensar em alternativas aos nossos sólidos partidos, tenho pena desse receio de pôr um pouco mais de rua no poder. Padecemos de algum inconseguimento para descolar das contas feitas e para demonstrar a quem se senta no poder que, sim, a casa onde habitam também é nossa.