Zé Maria e Jorge mostram-nos os seus “palacetes”
“É um cão abandonado que está aqui”. Pode o leitor imaginar um homem a dizer isto de si próprio? Se calhar, não imagina, mas é verdade. Zé Maria dá a cara. É dos poucos. Não deve nada a ninguém e não teme represálias por falar. Vive numa hospedaria perto do Campo 24 de Agosto e, repetidas vezes, anuncia-se à nossa reportagem como “o sem-abrigo mais antigo do Porto”.
Já dormiu com os costados no granito, mas há 16 anos que tem por companhia quatro paredes pintadas do azul do céu, mais um teto branco a cair aos pedaços. Dois postigos bem abertos impedem o mau cheiro e também lhe dão frio. E não será pouco, mesmo quando estão fechados: “É uma ventania do caraças”. Por isso, à noite põe uma placa de esferovite.
Zé Maria paga 160 euros pelo quarto, onde um simples espirro é capaz de deitar alguma coisa abaixo. Nascido em Gaia há 46 anos, perdeu a mãe aos quatro. Foi criado pelo pai, fez a escola primária, empregou-se ainda criança, aos nove. Hoje é alcoólico e, apesar de ter zero expectativas quanto a trabalho, garante não ter esquecido a arte de pedreiro de cantaria: “Faço a sua carinha numa pedra, a sério”.
É ele quem remenda o quarto. “Uma vez, estava a chover e o teto a cair-me. Eu aqui deitado, eram três da manhã, e caiu-me isto”, insiste, apontando para cima. Socorre-se dos conhecimentos que tem, dos materiais que vai guardando, das trinchas e dos rolos. E tudo isso compete com os terços e a imagem de Santo António na decoração do exíguo espaço. “São coisas que eu acho e penduro. Porque sou católico”.
Não sabemos que religião segue Jorge, outro caso que o JN encontrou em condições deploráveis. Alcoólico deficiente à conta de um problema na coluna, tem 48 anos e há nove que dorme num quarto perto do Hospital de Santo António. Tratando-se de uma pessoa que depende dos subsídios estatais, não era suposto que tivesse escapado a um correto diagnóstico por parte da Segurança Social, que está a pagar 150 euros/mês por condições desumanas. E desumano é o mínimo que se pode dizer.
Fica numa ilha. Mal se entra, duas retretes à esquerda servem para quase todos os que ali moram. Aspeto inenarrável, tal como o dito quarto, situado frente a uma outra divisão que serve de cozinha. Para tomar banho, abre-se uma porta ao lado e os aranhões saltam logo à vista, convivendo com a ferrugem do cilindro e as manchas há muito instaladas nas paredes.
Voltemos ao Zé Maria. No café percebe-se o motivo da nossa reportagem e, enquanto o decano dos sem-abrigo mastiga uma sande, a funcionária diz-lhe: “O palacete que tu tens eu não queria”. inserção plena, até porque as pensões são espaços de estigmatização”, refere-nos, acrescentando que “os recursos colocados ao dispor deste programa da Segurança Social [o NPISA] têm vindo a ser reduzidos e a Câmara Municipal não tem meios para liderar um projeto desta natureza”. “Ao que me dizem, nos últimos anos houve uma maior preocupação com a qualidade das pensões, mas ainda são absolutamente insatisfatórias do ponto de vista da qualidade”, acrescenta o responsável. Por fim, adiantou ao JN que nos próximos meses serão anunciadas medidas que a Rede Social está a estudar visando “soluções mais estáveis de alojamento”. Estão também em estudo alternativas à distribuição de comida nas ruas e, por fim, formas de tratar melhor e mais precocemente os sem-abrigo que continuam a dormir ao relento.