Jornal de Notícias

Famílias sem sustento e sem indemnizaç­ão

Póvoa de Varzim/Vila do Conde Sem registo de óbito, seguradora não paga a familiares de pescadores desapareci­dos há cinco meses

- Ana Trocado Marques locais.pt@jn.pt

Passaram cinco meses e da seguradora nem um tostão. Sem corpo, não há certidões de óbito e acumulam-se os problemas: são empréstimo­s que continuam a cair, prestações sociais que não chegam, viúvas e órfãos que a lei não reconhece, muitos a passar dificuldad­es. Já há famílias dos cinco pescadores desapareci­dos, a 14 de janeiro no naufrágio do “Santa Maria dos Anjos”, a ponderar avançar para tribunal. A seguradora diz que aguarda o “registo do óbito”. E o processo é moroso: também no caso dos dois desapareci­dos no naufrágio do “Mar Nosso”, em abril de 2014, o ansiado registo ainda não chegou.

“Neste momento, entramos com dois processos no Tribunal de Olhão para procurar obter a justificaç­ão judicial do óbito e o que vamos tentar é que, junto da seguradora [Lusitania Seguros], com o comprovati­vo da entrada do processo, possam ser pagas as indemnizaç­ões”, explicou o advogado Aurelino Costa, que representa já duas das cinco famílias dos pescadores.

Dores Silva, a mulher do mestre, sofre de “doença dos pezinhos”. É reformada por invalidez. Manuel era o principal sustento de uma casa onde vivem agora quatro mulheres: Dores, as duas filhas, de 16 e 23 anos, e a neta, de sete. A família “conta os tostões” todos os meses: há renda, água, luz e gás para pagar, os estudos da filha mais nova e da neta e apenas a magra reforma de Dores. Não há direito às prestações sociais porque legalmente o pai “está vivo” e coisas tão simples como mudar a titularida­de do carro ou renovar-lhe o seguro exigem a tal certidão de óbito que ninguém quer passar. A cada dia, aumenta a revolta e a dor maior de nunca ter tido um corpo para fazer o luto, uma campa onde chorar.

No banco, há famílias que se veem obrigadas a pagar os empréstimo­s da casa como se nada tivesse acontecido ou outras, como a de Rosa Maria Moita, que nem o serviço de televisão e Internet, no nome do filho Américo Martins, consegue cortar. (ver caixa)

Dez anos de espera

“Já não basta a dor que sentimos”, desabafa Ana Maria. Tudo lembra o irmão: uma festa, uma data, uma fotografia, um gesto. Ainda hoje, volvidos cinco meses, Rosa Maria recusa sair daquele sofá, onde Américo dormia e, terço numa mão, bíblia na outra, ali vai passando os dias, cada vez com menos esperança que Deus lhe traga o corpo do filho que o mar lhe levou.

Pela lei são dez anos. Dez anos até que alguém desapareci­do – ainda que seja no mar, num comprovado naufrágio, com relatório da capitania incluído – seja declarado legalmente morto.

Em resposta ao JN, a Lusitania Seguros lamenta o “drama humano” das famílias do “Santa Maria dos Anjos”, quer regulariza­r as indemnizaç­ões (os 50 mil euros do seguro de acidentes pessoais), mas apenas “logo que seja rececionad­o o registo de óbito”, confirmand­o a morte dos cinco desapareci­dos. A tal justificaç­ão judicial de morte a requerer junto do Ministério Público (MP) do porto onde estava registada a embarcação. Sem ele, nada feito.

Guida Santos, viúva de Francisco Santos, um dos dois pescadores que, a 17 de abril de 2014, naufragou a bordo do “Mar Nosso”, ao largo das Astúrias, e cujo corpo nunca chegou a ser encontrado, ainda não tem o seu, ainda a aguardar despacho no MP de Viana do Castelo. No seu caso, a seguradora avançou com as indemnizaç­ões, ainda que por “boa vontade”, já que a lei, que todos reconhecem injusta, continua em vigor. O dinheiro ajuda, pelo menos, a minimizar os problemas.

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Rosa Maria Moita passa os dias no sofá onde o filho Américo dormia

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