Marchas sonham com património da UNESCO
Lisboa Responsáveis dos bairros querem ver tradição seguir os passos que consagraram o cante alentejano
A Avenida da Liberdade, em Lisboa, recebe esta noite mais um desfile das Marchas Populares em honra de Santo António. É o ponto alto das festas da cidade, que todos os anos atrai à principal artéria da capital milhares de pessoas, entre as quais muitos turistas. A dimensão do espetáculo, que já por duas vezes foi citado pela CNN Travel como um dos melhores eventos urbanos de rua, faz com que, conforme o JN apurou, muitos dos participantes sonhem com uma candidatura a património imaterial da UNESCO, à semelhança do que aconteceu com o fado e, mais recentemente, com o cante alentejano.
“Esse é um aspeto que já tem sido ponderado, embora implique uma série de requisitos que é preciso ter em atenção”, disse ao JN Pedro Moreira, diretor de programação da EGEAC, empresa municipal responsável pelas festas da cidade. “É uma ideia que tem de ser ponderada, trabalhada e amadurecida”, acrescenta, salientando a crescente internacionalização do evento: “Todos os anos, por exemplo, a marcha vencedora é convidada para representar Portugal na abertura do ano novo chinês, em Macau”.
Já entre os responsáveis das próprias marchas, a ideia é acolhida com indisfarçável entusiasmo. “Era uma distinção importante e tem pernas para andar. Em termos de marca da cidade podia haver um melhor aproveitamento”, observa Pedro Jesus, responsável da marcha do Alto Pina.
Vítor Silva, do Bairro Alto, aplaude a candidatura e confessa que gostava de ver a EGEAC e a Câmara a avançarem com a candidatura, até porque, salienta, “seria importante para dar um incentivo à juventude”. “Cada vez é mais difícil organizar uma marcha. E isso era ver o nosso trabalho reconhecido a nível mundial”, destaca.
A internacionalização é também o trunfo que Francisco Ferreira, da marcha de Alcântara, evoca. “Se nos ensaios do pavilhão já se veem al- guns turistas, na avenida é quase meio por meio. O nosso trabalho, que tem todas as condições para chegar a património imaterial”, sublinha.
A ideia agrada ainda aos responsáveis da Madragoa, um dos mais castiços bairros da cidade. “O cante alentejano mereceu, mas toda a gente sabe a dimensão e a a importância das marchas para Lisboa. Isso só valorizava mais a própria cidade”, refere Paulo Santos, responsável pela representação do bairro.
“Interesses do caviar”
Mais reticente, João Ramos, responsável da marcha de Alfama, diz “Acho interessante, mas difícil”, justificando o ceticismo com algum elitismo em torno do evento. “Há quem olhe para as marchas como uma cultura de bairro. Quase pé-descalço”, destaca. Acrescenta, porém, que as marchas são “bandeiras culturais” dos bairros mais típicos e que, por isso, não deviam “esbarrar no preconceito” . “A avançar-se com a ideia, receio que haja alguma resistência dos interesses do caviar”, conclui.
Como o homem que mais marchas ganhou, que segredo tem para tantos êxitos?
Não é nenhum segredo, é um método de trabalho. Mas, a par do rigor, é preciso muita atenção à disciplina. Se não houver controlo sobre 50 almas [marchantes], não se conseguem resultados.
Há diferenças entre as marchas de hoje e as do tempo em que começou?
São diferentes, claro. Hoje, nota-se uma diferença muito grande relativamente a 1989/90, quando comecei. As marchas são mais elaboradas, mais trabalhadas. Dizem-me que tive alguma influência nessa mudança, o que me deixa orgulhoso pelo trabalho que desenvolvi.
E que lhe parece a ideia da candidatura a património imaterial da UNESCO?
Eu apoiaria uma campanha nesse sentido. As marchas são importantes na cultura de Lisboa e já foram consideradas internacionalmente como um dos melhores espetáculos urbanos de rua. Além disso, espalharam-se por todo o país. Hoje, qualquer terrinha tem as suas marchas.