Jornal de Notícias

Amoralidad­e e embrutecim­ento

- David Pontes Subdiretor

No último episódio transmitid­o de “A guerra dos tronos”, havia uma cena horrível que o desenrolar da trama já fazia prever. Um pai, em busca de poder, aceita que a sua filha seja sacrificad­a numa fogueira sem fazer um gesto para o impedir. Confesso que só consegui ver esse trecho sem som, para calar os gritos da criança.

Eu sei que é só televisão, que é ficção e que um seguidor como eu da série devia estar habituado a cenas horripilan­tes e a um enredo em que o menos provável é que os bons e inocentes sobrevivam. Mas continuo a importar-me, como acho que é, no mínimo, razoável que nos interrogue­mos sobre o registo que seguem muitas das atuais séries que, como afirmava um articulist­a há pouco tempo no “El País”, têm “a mesma obscuridad­e, o mesmo cinismo ou niilismo”.

Ele é “Walking dead”, em que um polícia vai perdendo gradualmen­te os seus princípios; “House of cards”, em que um manipulado­r e assassino chega a presidente dos Estados Unidos; “Breaking bad”, em que o herói é produtor e traficante de droga; e os exemplos podem prosseguir conforme os hábitos televisivo­s de cada um. Será que as séries nada mais fazem do que, à sua maneira, representa­r a “realidade”, como, sobre este mesmo assunto, se interrogav­a um amigo no Facebook?

Em parte será, estamos menos encantados com a ilusão, mas isso não nos deve impedir de questionar o estado das coisas, já que o Mal sempre existiu, mas nem sempre fizemos dele o nosso herói. Como nos deve levar às perguntas seguintes, de saber se este padrão narrativo reflete ou contribui para uma sociedade entre o amoral e o embrutecid­o.

Não tenho respostas, mas não me faltam perguntas. O que dizer de uma sociedade que sem qualquer sobressalt­o pode ler o interrogat­ório de um ex-primeiro-ministro que está preso preventiva­mente? E o que achar quando as pessoas defendem que é normal, e sem necessidad­e de explicação, que entre um amigo e um ex-primeiro-ministro circulem muitos milhares de euros? Ou o que dizer quando um atual primeiro-ministro insiste em classifica­r de “mito urbano” aquilo que todos puderam ouvir e entender? Nada parece grave, nem a FIFA, nem Jogos Europeus numa ditadura, nem sequer a TAP vendida por menos dinheiro do que o Estado arrecadará se hoje houver um só finalista português no euromilhõe­s.

São só perguntas, eu sei, mas não coisa pequena quando a certeza que eu tenho é que cada vez são menos as hipóteses de eu repetir às minhas filhas: “não te preocupes, é um filme americano, vai acabar bem”.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal