Jornal de Notícias

Colégios de órfãs

Desfazer dúvidas e aproveitar para fazer história

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u gosto de receber cartas como a de um leitor que, como ele próprio diz, é um tripeiro de gema “pois nasci no Terço (hospital da Irmandade de Nossa Senhora do Terço), em pleno coração da cidade antiga”.

Diz mais: que, por força da profissão, tem andado de terra em terra e só esporadica­mente vem ao torrão natal. Mas isso não obsta, acrescenta, a que continue a ter o Porto no coração. E ainda coloca uma questão interessan­te.

Pergunta: “Quantas instituiçõ­es houve no Porto com a designação de colégios das órfãs”.

A pergunta justifica-se. E quando atrás escrevi que gosto deste tipo de cartas em que se levantam questões interessan­tes, é porque elas me dão o ensejo de falar de algumas particular­idades pouco conhecidas da história do Porto.

Compreendo a dúvida do estimado consulente. O povo, para simplifica­r, dava ao Recolhimen­to das Órfãs de Nossa Senhora da Esperança, de S. Lázaro, simplesmen­te, o nome de Colégio das Órfãs. E o mesmo acontecia com o Real Recolhimen­to das Órfãs, fundado junto da Capela de S. Miguel-o-Anjo, à Porta do Olival, popularmen­te designado, também, por colégio das órfãs.

Vejamos a história da primeira daquelas instituiçõ­es. No dia 20 de agosto de 1718, faleceu, “da vida presente”, o padre Manoel de Passos Castro, que morava em Fradelos, na Quinta das Hortas, e que desempenha­va o alto cargo de tesoureiro-mor da Colegiada de Cedofeita. Foi sepultado na igreja dos religiosos de Nossa Senhora do Carmo, os Carmelitas. Deixou indicações aos seus testamente­iros para que depois de satisfeito­s todos os seus legados, o remanescen­te, aquilo que sobrasse, fosse aplicado “em obras pias e de caridade”.

Quatro anos depois (1722), estava concluída a distribuiç­ão dos bens do testador, faltando apenas fazer a aplicação do remanescen­te da herança. Um dos testamente­iros foi Dionísio Botelho Pereira d’Almeida, chantre daquela colegiada, que teve uma ideia: a de que “a obra para Deus mais grata, mais útil para o próximo, mais necessária à cidade e mais proveitosa para a alma do testador” seria a fundação de um recolhimen­to para órfãs. E assim nasceu o Recolhimen­to de Órfãs de Nossa Senhora da Esperança.

A história do outro recolhimen­to difere bastante da deste. E é anterior.

Foi fundado em 1672, anexo à Capela de S. Miguel-o-Anjo, que existia junto à Porta do Olival, por D. Helena Pereira da Maia, com o nome de Real Recolhimen­to de S. Miguel-o-Anjo para Meninas Órfãs. Também em relação a esta instituiçã­o o povo simplifico­u o nome designando – o apenas por Colégio das Órfãs.

A dúvida do leitor está assim mais do que justificad­a. Acontece, porém, que nesta último recolhimen­to não eram só órfãs que lá se recebiam. Também podiam ser recolhidas pensionist­as “sem defeito de sangue” (que não fossem judias) naturais do Porto ou da área do bispado, as quais “não podiam ter menos de 12 anos e não podiam permanecer na instituiçã­o para além dos 40 anos, para que durante esse tempo pudessem tomar estado”.

Neste recolhimen­to de S. Miguel-oAnjo também podiam ser recebidas “mulheres casadas, moças (isto é, ainda jovens), que tivessem os maridos ausentes, assim como viúvas honestas com menos de 40 anos de idade, e meninas órfãs, filhas de pais nobres da cidade”.

O leitor , refiro-me agora ao leitor comum desta crónicas que, nestas coisas da história do Porto, bebe do fino, já viu o que tudo aquilo quer dizer. Eu lembro: o Porto era, por aquele tempo, uma cidade de mercadores que passavam uma boa parte do ano por fora a mercadejar, na Flandres, na Inglaterra, por todo o Norte da Europa.

Essas viagens duravam, no mínimo, alguns meses, mas às vezes alongavams­e por anos. Deixar as mulheres – e quem diz as mulheres, diz as filhas, em casa, sozinhas, indefesas – não devia ser nada tranquiliz­ador.

Com efeito, a moralidade dos costumes na vida social do Porto dos séculos XVII e XVIII deixava muito a desejar. Fidalgos ociosos, peralvilho­s emproados e até frades de hábito e missa divertiams­e da forma mais libertina. Não admira, portanto, que os honrados mercadores, antes de empreender­em as suas arriscadas viagens de negócio, tratassem de pôr a salvo as mulheres e as filhas.

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A igreja e o Recolhimen­to das Órfãs, à direita

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