Jornal de Notícias

Lídia Jorge “Intolerânc­ia regressou em força”

Lídia Jorge “Estuário” marca regresso da autora aos romances

- POR Sérgio Almeida sergio@jn.pt

A crise, económica e não só, serviu de base ao novo romance de Lídia Jorge. Neste “Estuário” encontramo­s uma família de armadores atingida em cheio pelos estilhaços dessa mudança. É nesse cenário de ruína que emerge a figura de um jovem, Edmundo Galeano, apostado em levar ao mundo um sinal de esperança. Uma mensagem que Lídia Jorge espera poder contagiar os seus leitores.

A família que protagoniz­a o seu novo livro reage com tenacidade à crise. Esta resistênci­a é a chave do romance?

É a base, de facto. A história debruça-se sobre o modo como cada membro da família se relaciona com a adversidad­e. Contudo, há uma figura que se destaca: a do irmão mais jovem, Edmundo Galeano. É ele que abre a história para outra dimensão.

São todos seres com a vida em suspenso?

Vejo-as como figuras prometeica­s: arrojadas e, ainda que anónimas, com uma capacidade de reagir de forma estoica aos problemas. Faz parte da cartilha desta família não falarem em comum sobre a tragédia, para que ela não se propague.

A esperança sempre teve um papel importante nos seus livros, mas concorda que essa faceta agora está mais visível?

Se está deve-se a Edmundo, um jovem com a capacidade de ver o mundo de forma positiva. Não é que se assuma como um Messias. Quer é avisar o mundo sobre um perigo que considera iminente. O projeto de esperança advém do sonho que tem entre mãos.

Vê-o como um herói dos nossos dias?

Sim, mas é alguém que nunca irá ter os devidos louros, porque não os quer. Tem uma resistênci­a anónima. Os resistente­s não são os que assumem o palco, mas os que resistem anonimamen­te. São apenas reconhecid­os por um pequeno grupo que os rodeia.

A sociedade não deve passar sem esses heróis?

Esse é o papel da literatura. Ela serve para dizer que, mesmo os que não são reconhecid­os como tal, têm uma história com uma dimensão ontológica importante. O que a literatura faz é abençoar os que não têm bênção. É preciso devolver aos anónimos a crença de que a sua vida é insubstitu­ível e tem uma mensagem.

Faltam heróis extradespo­rtivos na sociedade?

Não acho que exista uma desportiza­ção da sociedade. Existe, sim, uma futeboliza­ção. Hoje o herói coletivo é o modelo do futebol, que esmaga todas as referência­s à sua volta. As dinâmicas sociais de progresso, ciência, cultura e boa vizinhança passam por ligações invisíveis a esse domínio. É por isso que a literatura não pode ser expulsa da nossa sociedade. Ela remete para a dimensão particular dos indivíduos e diz a cada pessoa que o seu destino é único.

É um papel ameaçado?

Às vezes, penso que sim. Há sinais contraditó­rios. Transmite-se, por um lado, a ideia de que a literatura é importante, mas, por outro, a perda de leitores é global. Sabemos, sim, que todos os meses se perdem leitores. Na Alemanha e na Suíça, de 2004 até ao presente, perderam-se seis milhões de leitores. Se esta mudança for progressiv­a, estamos a assistir a uma transforma­ção sociológic­a da leitura. A literatura é uma segunda alfabetiza­ção, porque é a base de todas as artes.

O que se perde com essa secundariz­ação da leitura e da literatura?

Há um espaço de reflexão e de entendimen­to do outro que se vai perdendo. A grande importânci­a da ficção, do teatro ou da poesia é que permite que o outro esteja na nossa presença. A arte diz-nos que devemos sobreviver em conjunto. Toda a arte tem uma ética, mesmo que não verse necessaria­mente sobre a esperança ou a solidaried­ade, relacionad­a com o companheir­ismo e a irmandade.

Caminhamos, então, para uma sociedade cada vez mais intolerant­e?

Penso que ela já está aí, entre nós. Regressou em força. As sociedades mais intolerant­es são em geral as mais religiosas, que têm o culto de um livro único. Não há dúvida que que o romance, que ganhou popularida­de no século XIX, ajudou a que as pessoas se tornassem mais tolerantes. Basta lembrar que o romance é contemporâ­neo da alfabetiza­ção, da industrial­ização, da queda da estratific­ação das sociedades ou da junção cultural dos continente­s. A perda de leitura torna-nos mais egoístas, egocêntric­as e intolerant­es em relação à diferença dos outros.

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