Lídia Jorge “Intolerância regressou em força”
Lídia Jorge “Estuário” marca regresso da autora aos romances
A crise, económica e não só, serviu de base ao novo romance de Lídia Jorge. Neste “Estuário” encontramos uma família de armadores atingida em cheio pelos estilhaços dessa mudança. É nesse cenário de ruína que emerge a figura de um jovem, Edmundo Galeano, apostado em levar ao mundo um sinal de esperança. Uma mensagem que Lídia Jorge espera poder contagiar os seus leitores.
A família que protagoniza o seu novo livro reage com tenacidade à crise. Esta resistência é a chave do romance?
É a base, de facto. A história debruça-se sobre o modo como cada membro da família se relaciona com a adversidade. Contudo, há uma figura que se destaca: a do irmão mais jovem, Edmundo Galeano. É ele que abre a história para outra dimensão.
São todos seres com a vida em suspenso?
Vejo-as como figuras prometeicas: arrojadas e, ainda que anónimas, com uma capacidade de reagir de forma estoica aos problemas. Faz parte da cartilha desta família não falarem em comum sobre a tragédia, para que ela não se propague.
A esperança sempre teve um papel importante nos seus livros, mas concorda que essa faceta agora está mais visível?
Se está deve-se a Edmundo, um jovem com a capacidade de ver o mundo de forma positiva. Não é que se assuma como um Messias. Quer é avisar o mundo sobre um perigo que considera iminente. O projeto de esperança advém do sonho que tem entre mãos.
Vê-o como um herói dos nossos dias?
Sim, mas é alguém que nunca irá ter os devidos louros, porque não os quer. Tem uma resistência anónima. Os resistentes não são os que assumem o palco, mas os que resistem anonimamente. São apenas reconhecidos por um pequeno grupo que os rodeia.
A sociedade não deve passar sem esses heróis?
Esse é o papel da literatura. Ela serve para dizer que, mesmo os que não são reconhecidos como tal, têm uma história com uma dimensão ontológica importante. O que a literatura faz é abençoar os que não têm bênção. É preciso devolver aos anónimos a crença de que a sua vida é insubstituível e tem uma mensagem.
Faltam heróis extradesportivos na sociedade?
Não acho que exista uma desportização da sociedade. Existe, sim, uma futebolização. Hoje o herói coletivo é o modelo do futebol, que esmaga todas as referências à sua volta. As dinâmicas sociais de progresso, ciência, cultura e boa vizinhança passam por ligações invisíveis a esse domínio. É por isso que a literatura não pode ser expulsa da nossa sociedade. Ela remete para a dimensão particular dos indivíduos e diz a cada pessoa que o seu destino é único.
É um papel ameaçado?
Às vezes, penso que sim. Há sinais contraditórios. Transmite-se, por um lado, a ideia de que a literatura é importante, mas, por outro, a perda de leitores é global. Sabemos, sim, que todos os meses se perdem leitores. Na Alemanha e na Suíça, de 2004 até ao presente, perderam-se seis milhões de leitores. Se esta mudança for progressiva, estamos a assistir a uma transformação sociológica da leitura. A literatura é uma segunda alfabetização, porque é a base de todas as artes.
O que se perde com essa secundarização da leitura e da literatura?
Há um espaço de reflexão e de entendimento do outro que se vai perdendo. A grande importância da ficção, do teatro ou da poesia é que permite que o outro esteja na nossa presença. A arte diz-nos que devemos sobreviver em conjunto. Toda a arte tem uma ética, mesmo que não verse necessariamente sobre a esperança ou a solidariedade, relacionada com o companheirismo e a irmandade.
Caminhamos, então, para uma sociedade cada vez mais intolerante?
Penso que ela já está aí, entre nós. Regressou em força. As sociedades mais intolerantes são em geral as mais religiosas, que têm o culto de um livro único. Não há dúvida que que o romance, que ganhou popularidade no século XIX, ajudou a que as pessoas se tornassem mais tolerantes. Basta lembrar que o romance é contemporâneo da alfabetização, da industrialização, da queda da estratificação das sociedades ou da junção cultural dos continentes. A perda de leitura torna-nos mais egoístas, egocêntricas e intolerantes em relação à diferença dos outros.