Jornal de Notícias

“Centrar a discussão do combate nos meios aéreos tem sido um erro”

Francisco Castro Rego pede apoios públicos à reconversã­o da floresta para espécies como o carvalho ou o castanheir­o, nos primeiros 20 ou 30 anos

- POR Alexandra Figueira afigueira@jn.pt ALEXANDRA FIGUEIRA

No combate aos incêndios, o grande enfoque dado aos meios aéreos, que não voam de noite nem com vento forte, tem sido um erro, considera Francisco Castro Rego, presidente do Observatór­io Técnico Independen­te para Análise, Acompanham­ento e Avaliação dos Incêndios Florestais e Rurais. Numa entrevista em que expressa opiniões pessoais, adiantou que o observatór­io está a confrontar as medidas do Governo com as recomendaç­ões das comissões técnicas aos incêndios de junho e outubro.

Do confronto das recomendaç­ões com as medidas tomadas, a que conclusões estão a chegar?

Com a análise dos incêndios deste ano veremos se houve melhoria da eficácia. Aparenteme­nte, há melhorias no combate, na proteção civil, na perceção pública do risco. Mas é fundamenta­l perceber se correspond­em à realidade. Temos de perceber que parte do que correu melhor do que no ano passado se deve à meteorolog­ia ou à melhoria do sistema.

A especializ­ação do combate é o caminho certo?

A maior especializ­ação dos agentes para questões de fenómenos extremos (quando as condições são propícias a um grande incêndio) é fundamenta­l. Houve melhorias, mas tem de ser reforçada, em número e sobretudo em estratégia, formação, conhecimen­to, lógi- ca de combate. Os voluntário­s são fundamenta­is, mas a sua atuação, em condições extremas, está limitada. Quando se antecipam condições extremas, desde o início tem de haver acompanham­ento por agentes mais especializ­ados.

No combate, tem-se investido sobretudo em meios aéreos. Concorda?

Em condições extremas, os meios aéreos estão limitados nas condições mais difíceis (de vento forte) e nas condições mais benéficas para o combate (à noite). Centrar o enfoque do combate nos meios aéreos tem sido uma facilidade muito redutora.

Não vai a ponto de dizer que o enfoque grande dado aos meios aéreos é um erro?

Aí posso dizer claramente que tem sido um erro centrar apenas a discussão do combate numa lógica de meios aéreos, de quem gere, de quantos são, etc. São um bom complement­o, mas precisam de uma base bastante diferente.

Os sapadores florestais, de entidades privadas, estão a ser reforçados. Faz sentido, ao invés de reforçar as estruturas públicas?

Temos um pecado original com 200 anos: a privatizaç­ão da floresta. Somos um caso único na Europa e quase único no Mundo, de uma floresta tão pouco estatal. O programa de sapadores é uma tentativa do Estado de apoiar os privados. Do ponto de vista do desenho institucio­nal, está certo. Mas o diabo está nos detalhes, nos salários muito baixos. Há equipas que funcionam bem e outras que mudam constantem­ente, em que a formação dada num ano desaparece no ano seguinte, porque é preciso recrutar outros sapadores.

Que balanço faz da reforma da floresta?

Há uma variedade grande de situações. Tenho acompanhad­o mais a dos fogos controlado­s [para limpar a floresta]. Se bem utilizados, permitem reduzir o combustíve­l em áreas muito significat­ivas, mas têm de ganhar escala. As intervençõ­es têm sido parcelares, dependente­s de candidatur­as “ad hoc” ao Programa de Desenvolvi­mento Rural, o que não permite uma lógica territoria­l coerente. Uma redução de combustíve­l rápida, em largas áreas, exige fogo controlado ou uma utilização energética do combustíve­l, mais útil, rentável e neutra, do ponto de carbono. Há muitos exemplos na Europa Central de uso da biomassa para produzir calor no inverno.

As entidades coletivas de gestão de floresta têm condições para funcionar bem?

Não tem havido um quadro contratual entre o Estado e as entidades gestoras da floresta com horizontes temporais e condições financeira­s. Está tudo dependente de fundos comunitári­os.

É possível reordenar a floresta sem forçar os proprietár­ios a explorar ou a entregar à exploração?

Há formas de fazer uma boa exploração, não mexendo no tabu da propriedad­e. O país reage a estímulos. A partir do momento em que a floresta esteja constituíd­a, espécies de lento cresciment­o como o carvalho ou o castanheir­o podem dar uma rentabilid­ade superior às de rápido cresciment­o, como o eucalipto e o pinheiro. Mas os proprietár­ios só entrarão nessa equação se houver, para os primeiros 20 ou 30 anos, apoios à reconversã­o. Seria um bom investimen­to do dinheiro público ou comunitári­o.

Que avaliação faz da forma como os proprietár­ios tiveram de limpar os terrenos em torno de casas?

Teve um efeito excelente: alertar as pessoas para o risco. A mediatizaç­ão foi bem feita, porque chegou a toda a gente. Mas a componente técnica, do fazer bem e olhar para as consequênc­ias, não foi bem medida. Havia condições para fazer melhor. Do ponto de vista do alerta e da criação de perceção de risco, foi bem; da solução técnica, foi mau.

Não se apurou a causa de 56% dos incêndios. Seria importante fazê-lo?

Com um elevado número de ignições, apurar as causas de 100% não é realista. Fundamenta­l é, até por amostragem, perceber as causas determinan­tes e trabalhá-las, na vertente da sensibiliz­ação, educação e repressão. Há uma regionaliz­ação grande das causas.

“Há formas de fazer uma boa exploração [da floresta] não mexendo no tabu da propriedad­e”

A redução rápida de combustíve­l em largas áreas exige fogo controlado ou a utilização energética

Criado por sugestão de Marcelo Rebelo de Sousa e por proposta do PSD (apesar do voto contra do PS), o Observatór­io já começou a trabalhar. Mas não tem a garantia de que o Governo esperará pelas suas conclusões antes de reformar o sistema nacional de proteção civil.

O observatór­io já começou a trabalhar?

Já tivemos duas reuniões plenárias. A mais urgente das nossas atribuiçõe­s, que tem de ficar pronta até ao final do ano, é a auditoria ao sistema nacional de proteção civil: às atribuiçõe­s, orgânica, estrutura, aos pontos fortes e fracos. Já estão previstas audições das entidades e foi atribuído “trabalho de casa” aos membros.

Com base no seu conhecimen­to do setor, o que está a correr melhor e pior?

Mais do que a minha perceção, esperaria pelas conclusões do observatór­io. O Governo tem a intenção de fazer mudanças orgânicas em várias entidades do sistema, o que causa uma dificuldad­e: se vamos avaliar um sistema em mutação, a utilidade da avaliação fica limitada. Pedimos aos ministério­s da Administra­ção Interna e Agricultur­a e à Agência para Incêndios Rurais para indicar as linhas mestras das alterações, para podermos opinar em tempo útil.

Tem indicação de que nada mudará enquanto não terminar a auditoria?

Não estou seguro do timing do Governo. Já fizemos uma nota informativ­a para veicular uma preocupaçã­o sobre a coerência da organizaçã­o territoria­l dos agentes de proteção civil. Se uns tiverem uma organizaçã­o territoria­l diferente de outros, a coerência do sistema fica prejudicad­a. Também já pedimos os Planos Regionais de Ordenament­o Florestal, que estão em fase de publicação ou de apreciação final. Não sabemos se iremos em tempo útil para os modificar, mas a resolução do problema passa muito pelo ordenament­o da floresta.

Este trabalho não é remunerado. Passará a ser?

Terá havido um lapso na lei, que não o previu, como tem previsto nas comissões técnicas anteriores e na comissão para a descentral­ização. Julgo que é intenção da Assembleia da República corrigi-lo. Mas esse facto não nos parou. Não é condição para o funcioname­nto, mas [será] a reparação de uma situação injusta.

Foram criados vários grupos de trabalho sobre incêndios. Que diferença fará este Observatór­io?

O Observatór­io é de grande utilidade. As comissões dos incêndios de Pedrógão e de Outubro foram reativas. Quando temos um ano mau, somos muito reativos, mas passados dois ou três anos baixamos a guarda. É precisa uma atenção continuada. O Observatór­io foge da fase reativa e tem uma postura de diagnóstic­o, proativa. E tem o legado das comissões técnicas, a nossa cartilha para olhar para o que está a ser feito pelo Governo. Estamos a confrontar as recomendaç­ões com o que está a ser feito na realidade.

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A Secretaria de Estado para a Valorizaçã­o do Interior “é um sinal positivo de que vale a pena apostar nas economias do interior”, diz o professor do Instituto Superior de Agronomia de Lisboa

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