“Aveiro não tem um centro histórico ou uma praça do comércio”
Arquiteta paisagista conta em livro como a cidade da ria evoluiu entre os séculos XV e XIX
“A MURALHA DA CIDADE FOI DEMOLIDA PARA SE USAREM AS PEDRAS NA CONSTRUÇÃO DA BARRA DE AVEIRO”
Há 15 anos que Maria José Curado, arquiteta paisagista e professora na Universidade do Porto, estudava a cidade de Aveiro, onde vive, com os seus alunos. Mas tinha dúvidas que a intrigavam e achava que alguma informação não era clara nem estava sistematizada. Por isso, aproveitou um ano de sabática para investigar o centro urbano aveirense. Surgiu “Evolução urbana de Aveiro: espaços e bairros com origem entre os séculos XV e XIX”, um livro que nos leva por uma história da cidade, desconhecida por muitos. Uma obra que, acima de tudo, permite conhecer o passado, para pensar no futuro.
O que é que nos pode dizer sobre como era Aveiro no século XV?
Em primeiro lugar, existia uma muralha, que era algo muito marcante na cidade e que circundava a zona mais nobre, a sul do canal principal. Aí dentro, existia a Câmara, o hospital e os principais equipamentos da cidade. A muralha tinha nove portas e duas delas faziam a ligação da via principal, que é aquela a que hoje chamamos Rua de Coimbra e Rua dos Combatentes da Grande Guerra. A porta da Ribeira ligava à porta da Vila através dessa via.
A cidade girava em torno da muralha?
Não necessariamente. Importa dizer que a muralha não foi construída por questões defensivas, mas sim por prestígio. Além disso, em Aveiro tínhamos um outro polo extremamente importante, a norte do canal principal, naquele a que hoje chamamos de bairro da Beira-Mar, onde se instalavam as pessoas das atividades ligadas à ria. Era uma área muito importante, mas de gente mais humilde. E, mais ou menos na zona do Alboi, havia grandes comerciantes estrangeiros a viver. Depois, o que hoje é a Avenida Lourenço Peixinho era um dos dois canais principais da ria, chamado canal do Côjo, e tinha um aqueduto. No outro, que hoje nos leva até à Fonte Nova, havia muita indústria de cerâmica instalada. Outra zona importante, o Bairro dos Oleiros, estava situada a sul da muralha, no limite do atual Bairro do Liceu.
Qual era a importância daquele que veio a ser o bairro da Beira-Mar?
Vivia ali uma parte importante da população e era dali que se fazia a ligação a Esgueira, que era independente de Aveiro. Entre a Beira-Mar e Esgueira havia o que se chamava de Confraria de Sá, associada à capela da Nossa Senhora da Alegria, que funcionava como um apoio aos pescadores, quando eles adoeciam, por exemplo, e do ponto de vista social. Esta população preferia ir à missa fora de muralhas e ia quase até Esgueira, às Barrocas. Percorria aquele caminho, o Caminho de Sá, que passava pelo Convento do Carmo e pelo Convento de Sá, que ardeu e é onde hoje se situa o quartel da GNR. Um facto curioso é que essa zona de Sá não pertencia a Aveiro, mas sim a Ílhavo. E os impostos em Ílhavo eram mais baixos. Então, muitos homens que saíam à noite preferiam ir para as tascas daquela zona de Sá, porque eram mais baratas.
Porque é que a muralha foi abaixo, se outras cidades portuguesas as mantiveram?
A muralha acabou por ir abaixo, no século XIX, porque houve a necessidade de construir uma barra fixa, em pedra, uma vez que, devido à natureza, a barra abria umas vezes num sítio, outras noutro. Isso trazia grandes problemas à movimentação comercial. Como a muralha estava a degradar-se e não havia nesta zona muitos materiais para construir uma barra, houve indicação para se desmontar a muralha e utilizar essas pedras, que ainda lá estão, na construção da barra.
Cometeram-se erros na evolução urbana de Aveiro? Cometem-se sempre erros. Nesta questão do planeamento urbano é sempre necessário pesar os prós e os contras, pois dificilmente uma solução responde aos problemas todos sem criar outros.
Mas considera que, hoje, a nível paisagístico, é uma cidade agradável?
De uma forma geral, sim. Mas em Aveiro há um problema de conservação do património civil. Depois, tem características biofísicas muito simpáticas, mas, se me perguntarem se tem espaços verdes suficientes, não, não tem. Outra coisa que a cidade não tem é um centro histórico ou uma praça do comércio, como outras cidades. O centro de Aveiro é uma avenida, que vai desembocar numa rotunda viária. Avenida essa que foi construída para ligar o centro da cidade à linha ferroviária e que chegou a estar pensada para ser construída entre a estação de comboios e o Governo Civil, o que mudava totalmente a cidade. Do ponto de vista do desenho, a cidade tem falta de algo mais central, de um ponto de encontro.
Os decisores políticos de uma cidade deviam conhecer melhor a sua história?
Sem dúvida. Este livro é escrito a contar o passado, mas a pensar no futuro. Só compreendendo determinadas formas de evolução é que podemos perceber o que está a acontecer e antecipar coisas que não queremos que voltem a acontecer. Por isso, é mesmo fundamental.