Canções que procuram a paz no meio do caos
António Manuel Ribeiro regressa aos discos a solo com “As canções da casa escura”. São temas unidos pela vontade de comunicar a calma e o sossego
MÚSICA “Fiz o disco para poupar uma ida ao psiquiatra”, diz António Manuel Ribeiro acerca de “As canções da casa escura”, terceiro álbum de originais do vocalista dos UHF, sucessor de “Sierra Maestra”, de 2000. Gerado em pleno confinamento, reúne temas de várias épocas que têm em comum um “ambiente de paz”.
“Em finais de dezembro percebi que o chão nos ia fugir outra vez. Os UHF tinham lançado três álbuns ao vivo em 2020, continuar nessa senda seria fazer mais do mesmo. Então, resolvi olhar para o meu arquivo”, explica o músico, cuja atividade ao longo do ano passado se materializou também em “De Almada para o Mundo”, livro que regista as reflexões que publicou no Facebook durante o primeiro confinamento. Com nova clausura à porta, visitou o passado: “Estas canções não saem da casa escura da pandemia, mas de um cofre onde guardei preciosidades”.
E qual o critério com que garimpou? “Procurei, antes de mais, uma unidade sonora, algo que não coubesse naquilo que os UHF fazem. Há pouca eletricidade neste disco e muito mais piano. Quis também um ambiente sem excessos, já basta a loucura que tudo isto é e a irracionalidade de negacionistas e conspiracionistas. Barafustei muito na idade certa, agora prefiro transmitir algo que apele à serenidade e à autocontemplação, porque temos cá dentro as soluções para lidar com as coisas, se as soubermos procurar com calma”.
SEM MEIO TERMO
Apaziguar em vez de encontrar inimigos, porque “nesta história só há um verdadeiro inimigo – o próprio vírus”, sublinha António Manuel Ribeiro, que nessa demanda pela paz foi até 1996, ano em que escreveu “Amor perdi”, a canção mais antiga do álbum. Excetuando quatro temas – como “Um crepúsculo sem distúrbios”, balada em spoken word que encerra o álbum e faz lembrar, na sua toada crepuscular, o poema punk de John Cooper Clarke “Beasley Street” –, todas as restantes faixas eram já produto acabado e gravado.
Entre essas contavam-se, por exemplo, o tema de apoio à seleção nacional no Mundial da Rússia “Assalto ao Kremlin”, que conta com letra de João Gobern e a participação de Tim e Miguel Ângelo. Ou a versão de “Povo que lavas no rio”, que foi incluída no disco de 2019 “Com que voz – Uma canção para Amália”. As mais recentes, escritas durante o segundo confinamento e trabalhadas de forma inédita para o cantor, que enviava o pacote com voz e guitarra aos músicos que o ajudaram no projeto – vários deles membros dos UHF – para que acrescentassem os arranjos, mantêm o ambiente acústico e pausado, mas não se isentam de um olhar crítico: “Somos assim (portugueses)” é uma carta de amor ao país, mas também um reconhecimento da “bipolaridade” que o caracteriza: “Como mais uma vez se provou durante a pandemia, não temos feitio para o meio termo: ou somos os melhores do Mundo ou os piores. Ou nos glorificamos ou nos fustigamos”. E há também a alusão ao caso do juiz Moura, que invocou a “Bíblia” para censurar uma mulher pelo adultério, em “Um moura de outrora”.
Considerando que estamos ainda no meio do desconhecido, e que passará algum tempo até avaliarmos o verdadeiro impacto psicológico que a situação trouxe, o músico vai desconfinando e amanhã apresenta-se pela primeira vez ao vivo este ano, com os UHF, no auditório O Cinema, em Oliveira de Azeméis.