A coroação de um anarquista
Rui Reininho surpreende com um álbum de exuberante experimentação
O primeiro álbum a solo de Rui Reininho em 13 anos mergulha numa ousadia que merece ser festejada. Tem o produtor e multi-instrumentista Paulo Borges como coarquiteto e a psicóloga holandesa Jacomina Kistemaker como uma guia espiritual – e sonora: traz gongos, taças tibetanas, monocórdio.
Em “Ressonância magnífica” evoca-se a vibração dos corpos no Universo, e “Namastea” viaja do Nepal para a Andaluzia e dali para um Japão em alta resolução. As fronteiras entre instrumentos suados e ampliações digitais são quase invisíveis, aqui e em todo o álbum.
“Tan tan no Tibet” introduz outra dimensão dominante no álbum: daqui em diante, muita da ação sonora acontece a milhas de profundidade oceânica, farrapos de plâncton e seres por catalogar arrastando-se pela música. É neste berço líquido que plana “Hidrofone”, a faixa mais abstrata e atmosférica (pelo menos até ao derradeiro minuto, em que provavelmente uma guitarra esfola os ouvidos), e é dali que “Turafões” leva o tempo que entende a emergir como canção-catálogo eletrónica, fria como uma cortina de ferro.
A obra-prima “Enfado vegetariano” lança o fado contra o flamenco e os graves fazem ricochete no granito. O Porto passa pelos versos, o desafio e a ternura e o escárnio também (“Na rotunda onde está/ Tem coroação anarquista/ É o leão da Boavista”), e a canção tem como antepassado mais evidente “Sete naves” dos GNR, de 1985. Um arremedo de melodrama mais linear também brota em “Palmas”.
A palavra dita domina o tríptico “Ao lado d’Almada” (jazz de fim de linha, com sopros em conversa atordoada), “Animais errantes” (também jazz, à beira da apoplexia, com tensão rítmica vizinha do drum ’n’ bass), e “Aqua regia” (a persona Reininho como o último rei, corroído pela loucura, uivando ao pé do precipício). Em “Fartos do mar”, o artista perde-se entre circuitos elétricos e nas cordas da guitarra de Alexandre Soares, e o que dele sobra no derradeiro “The sea” é já um HAL 9000, a nuvem de inteligência artificial criada por Arthur C. Clarke, em processo de desmantelamento poético.
20 000 éguas submarinas
RUI REININHO TURBINA