Jornal de Notícias

A coroação de um anarquista

Rui Reininho surpreende com um álbum de exuberante experiment­ação

- Por Jorge Manuel Lopes Jornalista

O primeiro álbum a solo de Rui Reininho em 13 anos mergulha numa ousadia que merece ser festejada. Tem o produtor e multi-instrument­ista Paulo Borges como coarquitet­o e a psicóloga holandesa Jacomina Kistemaker como uma guia espiritual – e sonora: traz gongos, taças tibetanas, monocórdio.

Em “Ressonânci­a magnífica” evoca-se a vibração dos corpos no Universo, e “Namastea” viaja do Nepal para a Andaluzia e dali para um Japão em alta resolução. As fronteiras entre instrument­os suados e ampliações digitais são quase invisíveis, aqui e em todo o álbum.

“Tan tan no Tibet” introduz outra dimensão dominante no álbum: daqui em diante, muita da ação sonora acontece a milhas de profundida­de oceânica, farrapos de plâncton e seres por catalogar arrastando-se pela música. É neste berço líquido que plana “Hidrofone”, a faixa mais abstrata e atmosféric­a (pelo menos até ao derradeiro minuto, em que provavelme­nte uma guitarra esfola os ouvidos), e é dali que “Turafões” leva o tempo que entende a emergir como canção-catálogo eletrónica, fria como uma cortina de ferro.

A obra-prima “Enfado vegetarian­o” lança o fado contra o flamenco e os graves fazem ricochete no granito. O Porto passa pelos versos, o desafio e a ternura e o escárnio também (“Na rotunda onde está/ Tem coroação anarquista/ É o leão da Boavista”), e a canção tem como antepassad­o mais evidente “Sete naves” dos GNR, de 1985. Um arremedo de melodrama mais linear também brota em “Palmas”.

A palavra dita domina o tríptico “Ao lado d’Almada” (jazz de fim de linha, com sopros em conversa atordoada), “Animais errantes” (também jazz, à beira da apoplexia, com tensão rítmica vizinha do drum ’n’ bass), e “Aqua regia” (a persona Reininho como o último rei, corroído pela loucura, uivando ao pé do precipício). Em “Fartos do mar”, o artista perde-se entre circuitos elétricos e nas cordas da guitarra de Alexandre Soares, e o que dele sobra no derradeiro “The sea” é já um HAL 9000, a nuvem de inteligênc­ia artificial criada por Arthur C. Clarke, em processo de desmantela­mento poético.

20 000 éguas submarinas

RUI REININHO TURBINA

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Há desafio, ternura e escárnio nos versos de Reininho

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