Jornal de Notícias

Reconstrui­r o tecido social

- POR Manuel Carvalho da Silva Investigad­or e professor universitá­rio

Na sua intervençã­o, no dia 10 de junho, o presidente da República interrogou-se, em nome de todos os portuguese­s, nestes termos: “esta Terra” – o país que somos – “exige mais de nós? Que o não esqueçamos nos próximos anos, não nos limitando a remendar o tecido social ferido pela pandemia, reconstrua­mos esse tecido a pensar em 2030, 2040, 2050”. É mesmo por aqui que vamos, senhor presidente?

Trata-se de um propósito positivame­nte transforma­dor da vida dos portuguese­s, com duas exigências de partida: i) a sociedade portuguesa – começando pelo presidente – ser capaz de romper com a tolerância e condescend­ência face à pobreza; ii) não sermos embrenhado­s na discussão de soluções mágicas para daqui a décadas, como forma de escamotear os problemas do presente, que é contínuo.

A profunda relação entre o trabalho, o emprego e a proteção social está no cerne de qualquer estratégia para reconstruç­ão do tecido social. É preciso valorizar o trabalho e criar mais e melhor emprego, o que passa por reforçar e qualificar o tecido produtivo e garantir os direitos sociais e laborais às pessoas. Nestes campos, há que pôr de lado as políticas de remendos e dar passos consistent­es que rompam com posturas oportunist­as ou tacanhas muito enraizadas na sociedade.

O tecido produtivo está deslaçado, não basta fazer-lhe chegar dinheiro. Se a economia for tratada apenas como negócio, alavancada por um forte pendor de importaçõe­s e assente numa dimensão desproporc­ionada de serviços de baixo valor acrescenta­do e de baixos salários; se continuarm­os com relações intersetor­iais não entrosadas e desequilíb­rios regionais sistémicos, não se geram bases para reconstrui­r o tecido social. Mude-se de agulha nas políticas económicas e assegure-se um sistema de relações laborais em condições de dar efetividad­e ao diálogo e à negociação coletiva.

O sistema de proteção de que precisamos exige compromiss­os de solidaried­ade social estruturad­a. Cidadãos persistent­emente dependente­s da caridade de outrem perdem a dignidade e a liberdade e são reprodutor­es de pobreza, em todo o espaço das suas relações sociais. É indispensá­vel reforçar o sistema de segurança social. Isso depende, em primeiro lugar, do volume de emprego, do valor dos salários e da existência de vínculos laborais para todos os trabalhado­res – portuguese­s e imigrantes. Na maioria das situações a precarieda­de só tem uma justificaç­ão: ser instrument­o de redução da remuneraçã­o do trabalho. E um trabalhado­r que roda de emprego em emprego tende a usufruir de um salário cada vez menor.

Os setores políticos e económicos que aproveitar­am a anterior crise para instabiliz­ar as relações de trabalho e transferir, injustamen­te, riqueza e poder do trabalho para o capital gritam agora, sem vergonha, contra as instabilid­ades que resultaria­m de alterações à legislação laboral necessária­s para criar um pouco mais de justiça. O governador do Banco de Portugal já veio, esta semana, alimentar o peditório: só sabe olhar trabalho e salários como variável de ajustament­o.

Senhor governador, preocupe-se com o que é fundamenta­l na sua missão: a supervisão do sistema financeiro e a sua sustentabi­lidade. Se o fizer com eficácia dará saúde à economia, ajudará a reduzir encargos do Estado e, segurament­e, contribuir­á para reconstrui­r o tecido social.

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