Só para estômagos (e mentes) fortes
Provocador romance de Shalom Auslander sobre a obsessão identitária do nosso tempo
Praticamente desconhecido (ainda) em Portugal, o norte-americano Shalom Auslander socorre-se do humor como detonador de consciências. Para certificar-se de que a sua mensagem chega ao maior número possível de pessoas, troca de bom grado as subtilezas e a fina ironia por uma contundência que, podendo não agradar a todos, é, pelo menos, francamente honesta nos seus propósitos, ao rejeitar ambiguidades ou duplos sentidos.
Essa estratégia humorística de contornos quase belicistas acarreta também alguns riscos, como o demonstra “Mãe para jantar”, o seu primeiro romance publicado entre nós, porque as atenções tendem a ser desviadas para o acessório, ignorando o contributo que lança para uma reflexão isenta de ideias predefinidas.
O enredo do romance é, no mínimo, insólito: Mudd, patriarca de uma das derradeiras famílias de canibais norte-americanos, procura certificar-se de que a sua alargadíssima prole (uma dúzia de filhos...)
O humor tem uma forte componente no trabalho de Shalom Auslander
dê continuidade à secular tradição antropofágica. Por isso, acaba por precipitar a sua morte, ao devorar uma dúzia de hambúrgueres diários durante vários anos, na esperança de que os filhos a possam achar mais suculenta e, assim, transformá-la numa hipercalórica ementa. Os intentos maternos acabam por esbarrar na resistência dos filhos, que, pese embora todo o empenho materno, mostram forte resistência em dar continuidade à peculiar prática degustativa da família.
Apesar dos contornos grotescos da premissa, o tom do humor é bem menos carregado. O absurdo de vermos a matriarca de uma família de canibais interessada na preservação da sua linhagem é apenas o artifício a que o autor nova-iorquino recorre para dar conta da obsessão identitária que caracteriza o nosso tempo.
As partes mais hilariantes acontecem quando Auslander satiriza o tribalismo crescente: “Escreve o que digo: um dia toda a gente vai ter a sua própria nação. Toda a gente não – todas as pessoas. Só assim é que o homem vai ficar satisfeito. (...) Quadrados de 30 por 30 centímetros, irmãmente divididos e espalhados por todo o globo, cercados por muros de três metros, encimados por arame farpado e bandeiras coloridas, com toda a gente lá dentro a cantar animadas marchas sobre como o seu quadradinho é o melhor de todos e foi escolhido por Deus de entre todos os outros quadrados”.
Shalom Auslander Guerra & Paz