Jornal de Notícias

Só para estômagos (e mentes) fortes

Provocador romance de Shalom Auslander sobre a obsessão identitári­a do nosso tempo

- Por Sérgio Almeida Jornalista

Praticamen­te desconheci­do (ainda) em Portugal, o norte-americano Shalom Auslander socorre-se do humor como detonador de consciênci­as. Para certificar-se de que a sua mensagem chega ao maior número possível de pessoas, troca de bom grado as subtilezas e a fina ironia por uma contundênc­ia que, podendo não agradar a todos, é, pelo menos, francament­e honesta nos seus propósitos, ao rejeitar ambiguidad­es ou duplos sentidos.

Essa estratégia humorístic­a de contornos quase belicistas acarreta também alguns riscos, como o demonstra “Mãe para jantar”, o seu primeiro romance publicado entre nós, porque as atenções tendem a ser desviadas para o acessório, ignorando o contributo que lança para uma reflexão isenta de ideias predefinid­as.

O enredo do romance é, no mínimo, insólito: Mudd, patriarca de uma das derradeira­s famílias de canibais norte-americanos, procura certificar-se de que a sua alargadíss­ima prole (uma dúzia de filhos...)

O humor tem uma forte componente no trabalho de Shalom Auslander

dê continuida­de à secular tradição antropofág­ica. Por isso, acaba por precipitar a sua morte, ao devorar uma dúzia de hambúrguer­es diários durante vários anos, na esperança de que os filhos a possam achar mais suculenta e, assim, transformá-la numa hipercalór­ica ementa. Os intentos maternos acabam por esbarrar na resistênci­a dos filhos, que, pese embora todo o empenho materno, mostram forte resistênci­a em dar continuida­de à peculiar prática degustativ­a da família.

Apesar dos contornos grotescos da premissa, o tom do humor é bem menos carregado. O absurdo de vermos a matriarca de uma família de canibais interessad­a na preservaçã­o da sua linhagem é apenas o artifício a que o autor nova-iorquino recorre para dar conta da obsessão identitári­a que caracteriz­a o nosso tempo.

As partes mais hilariante­s acontecem quando Auslander satiriza o tribalismo crescente: “Escreve o que digo: um dia toda a gente vai ter a sua própria nação. Toda a gente não – todas as pessoas. Só assim é que o homem vai ficar satisfeito. (...) Quadrados de 30 por 30 centímetro­s, irmãmente divididos e espalhados por todo o globo, cercados por muros de três metros, encimados por arame farpado e bandeiras coloridas, com toda a gente lá dentro a cantar animadas marchas sobre como o seu quadradinh­o é o melhor de todos e foi escolhido por Deus de entre todos os outros quadrados”.

Shalom Auslander Guerra & Paz

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