Saber escutar
Tendo incentivado no ano passado os profissionais da comunicação a “gastarem as solas dos sapatos” a ir aonde ninguém mais vai, desta vez a mensagem do Papa Francisco para o 56.o Dia Mundial das Comunicações Sociais, que se celebra a 29 de maio, é “escutar”. Imersos em ruídos diversos, sentimos ser cada vez mais difícil ouvir os outros com atenção. E, sobretudo, com tempo.
No livro “Hipercultura. O preço da pressa”, Stephen Bertman lembra que há um conjunto de órgãos que orientam o corpo humano para a frente: os olhos e o nariz estão implantados à frente, os pés apontam para a frente, os joelhos e os cotovelos são articulados de modo a favorecerem o movimento frontal. Dos órgãos sensoriais, apenas os ouvidos estão implantados de lado, a fim de, como se escreve, “permitirem apanhar os sons em estereofonia”. Servindo-se da sugestão do compositor Murray Shafer, Derrick Kerkhove, autor da obra “A pele da cultura”, escreve que “com os olhos estamos sempre à beira do mundo a olhar para dentro, enquanto com os ouvidos é o mundo que vem até nós e estamos sempre no seu centro”. A audição adquire, pois, enorme centralidade.
Ontem, acompanhando as peças que reportavam a deslocação de António Guterres a zonas devastadas da Ucrânia, prestei particular atenção ao modo como o secretário-geral das Nações Unidas se movia no terreno. Paralelamente a um olhar que se comovia com tamanhas atrocidades, Guterres foi escutando o que lhe diziam. E isso dizia tudo sobre o valor daquela viagem. O Papa Francisco
Imersos em ruídos diversos, sentimos ser cada vez mais difícil ouvir os outros com atenção. E, sobretudo, com tempo
lembra que “a escuta não tem a ver apenas com o sentido do ouvido, mas com a pessoa toda”. Daí que tenha intitulado a mensagem deste ano “escutar com o ouvido do coração”.
No caso do Jornalismo, escutar é uma exigência intrínseca à própria profissão. E transporta em si uma imposição de rigor, de imparcialidade e, acima de tudo, uma incansável procura pela verdade. Não é tarefa fácil, nomeadamente neste tempo em que escasseiam investimentos financeiros que garantam tempo suficiente para desenvolver trabalhos de qualidade.
Mesmo assumindo a sua laicidade, os média podem aprender bastante com a mensagem de Bergoglio. Quem trabalha nas redações sabe que é preciso tempo para escutar melhor as fontes. Para discernir realmente o que importa reter e para descobrir realidades que nos escapam pela sua subtiliza. “Só o espanto permite o conhecimento”, escreve o Papa Francisco. Se calhar, encontraríamos aqui um caminho profícuo para criar outras agendas noticiosas. Que tanta falta fazem.