Jornal de Notícias

Paula Rego

Sou muito grata a Paula Rego como sou a Elena Ferrante. São duas mulheres que intenciona­l e ativamente retratam a condição feminina sem cair na tentação de açucarar ou maquilhar seja o que for.

- POR Capicua Música

Paula Rego é eterna. Não podemos pensar a cultura portuguesa sem ela. Sem o seu olhar distanciad­o (de quem migrou há muito para outro país), mas sobretudo sem a intimidade de quem conhece os cantos mais sujos da casa. Fez questão de dizer que estava algures no meio do caminho. E, pensado bem, o meio do caminho era o seu lugar de fala, com os pés fincados entre a rudeza da realidade e as possibilid­ades da fantasia, entre a história e as estórias, entre as dores do corpo e a liberdade do espírito.

Com a sua série de quadros sobre o aborto, assim como com todas as suas declaraçõe­s a respeito (muitas delas confession­ais e de grande coragem), contribuiu muito para a campanha pela desele penalizaçã­o da interrupçã­o voluntária da gravidez, mostrando a força que pode ter a arte ao serviço de uma causa e a sua inabalável firmeza na defesa dos direitos das mulheres. Ela que foi sempre uma mulher livre, que fez questão de se dedicar sem reservas à sua vocação, pondo tantas vezes o trabalho à frente do cuidado com a casa e a família, num tempo em que isso era totalmente impensável.

O filme sobre a sua vida, realizado pelo filho, retrata essa força motriz, que a atirava para a pintura com toda a força, demonstran­do como nesse impulso estava depositada toda a sua pulsão de vida e todos os confrontos (que de interiores se faziam figura e mancha de cor). Há muito poucos artistas com a sua capacidade de expressar as costuras da vida com tanta verdade e é impossível não se ser impactado pelas suas imagens (talvez por isso tanta gente diga que não consegue gostar da sua obra). Custa muito olhar ao espelho, quando nos aumenta os hematomas.

Sou muito grata a Paula Rego, como sou a Elena Ferrante. São duas mulheres que intenciona­l e ativamente retratam a condição feminina sem cair na tentação de açucarar ou maquilhar seja o que for. Rompendo com a bipolarida­de a que nos habituou a história da arte (totalmente forjada pelo olhar masculino) de retratar as mulheres ou como musas (perfeitas, virginais, sem mácula) ou como vilãs (ardilosas, manipulado­ras e cruéis), na linha da misoginia que fundou a nossa cultura (da Grécia antiga, à Bíblia).

Rego e Ferrante, contam as nossas histórias, retratando as mulheres em toda a sua humanidade. Na beleza e no erro, no amor e no conflito, na maternidad­e e na dor, na sensualida­de e na desistênci­a, na elevação e nas baixas emoções. E é ao afirmar toda essa verdade (tantas vezes incómoda) que nos libertam, rejeitando ostensivam­ente a desumaniza­ção que o patriarcad­o teima em exercer sobre nós.

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal